Guttemberg Guarabyra
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Vandré queria levar com ele o xixi que havia vertido. Paranoico, afirmava que uma certa corporação estranha o vigiava dia e noite e tentava roubar seus fluidos.
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No tempo da máquina de escrever, havia, claro a página em branco, mas nada desse traço pulsante do cursor do programa de texto eletrônico imitando professora batendo o pé no chão para apressar o aluno. Anda. Escreve. Estou esperando.
Histórias para contar não faltam. Difícil é escolher.
Tem aquela da noite em que arribamos, eu e João Donato, na casa de Sérgio Ricardo, aquele que quebrou o violão num festival.
Já era noite alta. Sérgio nos conduziu, ladeando a residência, na Urca, Rio, até o estúdio que havia construído nos fundos.
Conversa vai cerveja vem, Donato assentou a mão no piano, assobiei uma melodia, cantei umas palavras, fizemos do nada uma música que mais tarde seria gravada por Gilberto Gil.
Mas a história boa da noite era a que Sérgio nos contaria mais tarde sobre a visita recebida, também numa madrugada, de Geraldo Vandré.
O banheiro do estúdio estava em reforma. Não querendo incomodar a família que dormia na residência, e para que Vandré pudesse fazer um xixi, Sérgio providenciou umas garrafas vazias.
Findo o encontro, Sérgio, notando um Vandré meio desorientado, resolveu levá-lo para casa em seu carro.
Tirou o carro da garagem, Vandré se acomodou no banco do carona e, súbito, lembrou que havia esquecido uma coisa importante no estúdio. Teriam que voltar e resgatar o precioso item esquecido.
Vandré queria levar com ele o xixi que havia vertido.
Paranoico, afirmava que uma certa corporação estranha o vigiava dia e noite e tentava roubar seus fluidos, fossem urina, sangue ou qualquer outro.
Não houve como fazê-lo desistir da ideia.
Resgatadas as garrafas, ao passarem pela Avenida Niemeyer, orlada por altos penhascos que desabam no mar, Vandré pediu que estacionasse.
Saltou do carro com as garrafas e as atirou do alto dos penhascos. O xixi engarrafado foi se misturar ao Atlântico
Mas não sei se essa história sem sentido agradaria ao leitor mais exigente.
Talvez agrade mais aquela em que Tom Jobim, idem numa madrugada, me ofereceu carona para levar-me em casa depois que o amável gerente do Bar Veloso nos avisou de que serviria nossa derradeira rodada de chope.
Fechado o estabelecimento, Tom garantiu-me conhecer um caminho até onde eu morava trilhado através de calçadas, em vez de ruas, em pelo menos metade do percurso.
Duvidei. Arrancamos.
Não dava para acreditar como de fato o carioca sabia por onde espremer o imenso Dodge Dart entre hidrantes, obstáculos, bancas de jornal, cobrindo através das calçadas e com absoluta firmeza a jornada entre Ipanema e Copacabana.
Hoje seria impossível. Ipanema e Copacabana já não são mais como no tempo em que as ruas ficavam praticamente desertas no avançado da noite.
Bem, falar em desertas, vejo que a página já não está mais em branco.
O cursor parou de bater o pezinho.
E isso me faz lembrar aquela da professora… Haja histórias.
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Música do dia
- Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Franscico, Interior da Bahia, cronista de ABCD REAL, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro. Entre seus maiores sucessos como compositor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra vez na estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá) , “Espanhola” (com Flávio Venturini), Dona e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas.