Guttemberg Guarabyra
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Não durou muito, pois o dono da banca descobriu meu namoro oculto com sua irmã, e fui solenemente dispensado. Mas aprendi bastante.
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Agosto tem fama de mês azarado.
Não é para menos, suicídio de Getúlio Vargas, renúncia de Jânio, morte de Juscelino, partida de Miguel Arraes e do neto Eduardo Campos no mesmo dia do mês.
Isso apenas no plano nacional.
No internacional, início da Primeira Guerra, morte da princesa Diana, adeus a Elvis, bombas atômicas sobre o Japão, e por aí vai.
Mas tem a festa do Bom Jesus da Lapa, no dia 6.
Na minha época não havia hotéis suficientes para acomodar tantos romeiros.
Daí a influência da romaria nos projetos das casas. A prudência, o senso de oportunidade e da bem-vinda estabilidade econômica impunham a adição de muitos quartos nas construções.
Mesmo estando vazios a maior parte do ano, ao se aproximar a data da festa, quando os romeiros iniciam a visita anual à cidade, os aposentos precisavam estar preparados para hospedá-los. Quantos mais, maior faturamento.
É inacreditável o que acontece no período em que está repleta de forasteiros. E mais inacreditável ainda quando há poucos visitantes.
Vai da água para o vinho e do vinho para água. Antes, e depois da Festa.
Para ter ideia, a cidade conta com cerca de 70 mil habitantes. Estima-se que recebeu 600 mil visitantes durante a última romaria, que é comemorada faz mais de 300 anos.
Antes da época dos festejos, uma cidade como qualquer outra do sertão baiano. Amigos marcando o encontro de sempre no bar de sempre. Amor, paixão no ar, encontros na velha esplanada, em frente à igreja, servida com a esplendorosa paisagem do Rio São Francisco, as águas explodindo reflexos luminosos vermelhos do verão.
Durante as festividades, muita ocupação, desencontros, a gente se vê depois.
Passada a peregrinação, comemoração, bolsos cheios, sinuca repleta de quem faturou e pode apostar alto, além de pagar a cerveja.
Faturei algum como fotógrafo, usando máquina-caixote e chapas de vidro com emulsão sensível à luz, para criar o negativo da foto preto e branco.
Não durou muito, pois o dono da banca descobriu meu namoro oculto com sua irmã, e fui solenemente dispensado.
Mas aprendi bastante.
Até hoje calculo com razoável precisão o tempo de exposição e velocidade nas máquinas modernas, sem precisar consultar o mostrador digital.
E mantenho firme a observação periférica para definir um bom enquadramento, graças à prática em organizar famílias de romeiros em frente à pintura do Senhor crucificado, acomodando todos no campo da lente.
Sem falar nas fotos individuais, em que prometia ao distinto forasteiro que seria brindado com um ‘retrato de galã’. E caprichava no perfil, arrumava-lhe o penteado, plano americano, sem dúvida, para disfarçar os barrigudos, e olhar sempre dirigido ao infinito. O galã pensador é muito mais bonito.
Dias bons de agostos bons e sagrados na fé do Senhor Bom Jesus.
Num momento de folga na banca de fotógrafo, sentado no chão centenário, fui flagrado um dia. Virou até capa de disco.
O menino de sapatos surrados hoje está distante, mas eternamente perto das boas lembranças. Que venha outubro. O setembro até que foi bom.
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Música do dia
- Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Franscico, Interior da Bahia, cronista de ABCD REAL, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro. Entre seus maiores sucessos como compositor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra vez na estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá) , “Espanhola” (com Flávio Venturini), Dona e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas.