PERTO DE CASA LONGE DO CORAÇÃO

In ABCD, Artigo On
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Guttemberg Guarabyra

Em minha opinião, Cecy, minha mãe, só não desmaiou porque não era fraca. E só não bateu porque não era forte. Mas que o velho merecia apanhar, não resta a menor dúvida.

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Sabia que aquele perfume francês, caro, minha mãe jamais usaria.

Dessa forma, não tive muito remorso, apenas um pouco, ao aceitá-lo como presente e em seguida fazê-lo retornar à condição de presente, para ser destinado à moça que vivia no bairro vizinho mas morava em meu coração.

A distância entre os dois bairros cariocas era curta. Portanto, a moça morava geograficamente perto. Mas a proximidade que eu desejava, de afeto, era — aprenderia mais tarde — pura fantasia de adolescente profundamente enamorado.

Ainda assim, cheguei do trabalho, descansei por alguns minutos as pernas exaustas de office-boy, tomei um banho, apurei-me todo, e fui entregar à deusa dos meus sonhos a joia etérea, como presente de aniversário.

A história do esmero com que embrulhei o perfume, nem vou revelar aqui, porque só esse episódio gastaria o espaço de uma novela inteira.

Dá para resumir dizendo que ficou bonito o laço azul sobre o papel acetinado amarelo.

Fosse hoje, eterno tímido, o teria expedido por motoboy, acompanhado da carta escrita havia dias e jamais enviada.

Iniciei a caminhada.

O apaixonado, além de cego, pode também ser maluco, abobalhado e, em última instância até inconveniente.

Quando lembro dos momentos vividos a partir dos passos largos com que subi as escadas do conjunto residencial em Del Castilho e apertei a campainha daquele apartamento, tenho a mais absoluta certeza de que, naquele dia, me qualificava na categoria de apaixonado citada por último na lista.

Ela não esperava. Ninguém ali esperava.

O aniversário seria no dia seguinte. O pai da moça atendeu à porta, espantou-se. Foi chamá-la. A musa encantadora, visivelmente surpresa, agradeceu muito, não entendeu nada. Estavam jantando, acho.

O sujeito dominado pela paixão geralmente perde a noção de tudo. Inclusive do ridículo. Felizmente, nesse item, não foi meu caso. Num lampejo de lucidez, mal fecharam a porta entendi que não só jamais meu amor havia sido correspondido, como até então nem sequer havia sido notado.

Outro dia estive imaginando o motivo pelo qual aquele perfume precioso foi parar lá em casa.

Havia sido presente do meu pai.

O velho não era muito chegado a esse tipo de galanteio, a não ser quando precisava amortecer alguma falta.

Feito aquela vez em que recebeu por herança um terreno, e, em vez de preservá-lo, o vendeu. E em vez de poupar, resolveu usar o dinheiro da venda para comprar uma fabulosa aparelhagem de som de alta fidelidade e um aparelho de TV. Na época, coisa de gente rica.

Ao chegar em casa com a notícia de que havia trocado a herança pelo orgulho de ter a mais avançada tecnologia de som e imagem, único no bairro, e contar a novidade para minha mãe, certamente já esperava a reação adversa.

Em minha opinião, Cecy, minha mãe, só não desmaiou porque não era fraca. E só não bateu porque não era forte. Mas que o velho merecia apanhar, não resta a menor dúvida.

Mas, aí vem a carta na manga. O velho, de surpresa (mais uma) apresentou o último item da compra embrulhado em papel de presente.

Abriu cuidadosamente o pacote e fez emergir lá de dentro o busto pesado, confeccionado em bronze, com base em mármore, de Frédéric Chopin, o compositor predileto de Cecy.

A televisão tornou-se atração do bairro. Os principais programas eram assistidos por dezenas de vizinhos, denominados na época de televizinhos, aglomerados na sala. A criançada, toda quarta-feira, às gargalhadas, acomodava-se até na varanda, espichando o pescoço para não perder as peripécias do palhaço Carequinha, no primeiro circo televisionado.

Até pouco tempo o busto de Chopin ainda sobrevivia entre os bens da família.

Meu presente, porém, herança fortuita, evaporou-se sem jamais ter revelado o perfume.

Dele, restou apenas a lembrança dos passos largos na escada, a expressão de incredibilidade da amada, e a sofrida descoberta, na volta para casa, de que a distância entre Del Castilho e Cachambi era bem maior do que meu coração pensava.

Música do dia

  • Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Franscico, Interior da Bahia, cronista de ABCD REAL, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro. Entre seus maiores sucessos como compositor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra vez na estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá) , “Espanhola” (com Flávio Venturini), Dona e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas.

 

 

 

 

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