SONHO BICICLETEADO

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Guttemberg Guarabyra

A-bê-cê-dê-é-fê-guê-agá-i-ji-lê-mê-nê-ó-pê-quê-rê-si-tê-u-vê-xis-zê!

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Hoje ninguém se atreve mais a fazer o comentário. Mas lá pelos 60s era comum dizer-se que baiano tem a cabeça grande.

Muitos até estendiam o bullying aos nordestinos de uma maneira geral. No entanto quem mais sofria com a estigmatização eram os baianos.

Hoje, olho minhas fotos aos 7, 8 anos e, de mim para mim mesmo, reconheço que possuía uma cabeça descomunal.

Às vezes penso que, na verdade, o que fazia minha cabeça parecer um fardo acima da capacidade de sustentação do pescoço, era meu corpo esquelético.

Foi com esse aspecto e trajando calças curtas azuis e camisa branca, o uniforme escolar padrão da época, que, nervoso, inseguro, me apresentei ao primeiro dia de aula, aos 7 anos, em Niterói.

Até então, morava na parte baiana do sertão do São Francisco.

Tímido ao extremo, tentava não ser notado no tumulto da sala de triagem repleta de estreantes.

O papel da professora — que depois de gastar muita garganta exigindo silêncio, conseguiu se fazer ouvir — era aplicar um rápido teste oral em cada aluno, de modo a distribuí-lo para a classe indicada. Ou, como diziam, para a primeira série A, que aprendi depois que apelidavam de ‘a’diantada, ou B, certamente alcunhada com algum apelido de status abaixo de A.

Quando chegou minha vez, dona Marisa, que ficaria conhecendo mais tarde, pediu que recitasse o abecedário.

Respirei aliviado. Sabia na ponta da língua.

A-bê-cê-dê-é-fê-guê-agá-i-ji-lê-mê-nê-ó-pê-quê-rê-si-tê-u-vê-xis-zê!

Não levei cinco segundos para recitá-lo de cabo a rabo.

No início, ouviu-se (?) um silêncio. E logo uma estrondosa e geral gargalhada. E, sabem como é gargalhada coletiva de criançada. É de ensurdecer.

Fiquei revoltado. Encarei a turba espumando de raiva, olhos crispados, punhos fechados. Fui vaiado.

Salvou-me a santa e queridíssima dona Marisa que correu desabalada até onde eu estava e me abraçou com imenso carinho, envolvendo minha notável cabeça em seus braços.

Ao mesmo em tempo que me acalmava, ela explicava à turba que o abecedário, em outras regiões do país, era dito de outra maneira, e que eu o havia aprendido daquela forma.

Fiquei magoado, mas nada que me fizesse ficar doente. E, se vale como consolo e vingança, acabei na classe adiantada.

Na série seguinte, meu corpo já tinha se avolumado e minha cabeça, mais harmonizada ao conjunto, não justificava mais o estereótipo. E houve um concurso de melhor redação para o Dia dos Pais. O prêmio, uma bicicleta.

Era meu sonho.

Caprichei.

Poucos dias antes da divulgação do aguardado resultado, dona Marisa veio conversar comigo ao fim das aulas. Era da comissão julgadora, e queria me fazer umas perguntas.

Para mim sempre foi um prazer papear com ela. Era dos poucos alunos que se interessavam pelo mundo exterior, gastava na banca de jornais o dinheiro que meus pais me davam para a merenda. Lia o jornal no recreio. Passava fome de estômago, jamais de informação. De modo que nossas conversas eram ótimas.

Naquele dia, porém, soou estranha.

Rodeou, desarrodeou, falou daquilo e daquiloutro, e no fim apresentou o petardo. Queria saber se alguém tinha me ajudado a fazer a redação.

A professora insistiu tanto na investigação, enquanto eu nem sequer havia notado que se tratava disso, de uma investigação, que resolvi ajudá-la.

Busquei o mais que pude na memória em que momento alguém teria me ajudado a confeccionar o texto.

Finalmente lembrei de ter perguntado ao meu velho se era certo dizer que “o pai ajudava a mãe a dar luz aos filhos”. Lembro que gaguejou. Não lembro o que respondeu. Mas, para ser gentil, julguei ter encontrado uma forma de colaborar com a apuração.

Sim! Disse a ela. Meu pai me deu uma ajuda!

Duas características eu possuía naquele tempo. Aliás, três. Duas permanecem eternamente incrustradas em minha personalidade. Honestidade e timidez. A terceira, ingenuidade, fui perdendo com o tempo.

Só compreendi no dia da entrega do prêmio, que naquele exato momento em que ajudei a professora, havia perdido a sonhada bicicleta.

Dona Marisa comentou na cerimônia de premiação que uma redação, a minha, havia sido a predileta. Mas como eu mesmo havia confessado que a redigira com auxílio do meu pai, teve que desclassificá-la, em respeito ao regulamento.

Jamais, em razão disso, olhei com outros olhos a professora. E a amei para sempre. Mas, desde aquele dia comecei a olhar a mim mesmo de outra forma.

Ao contrário do mal-entendido do abecedário, que não me causou nenhum trauma, isso me deixou, por muito tempo, um pouco doente.

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Música do dia

  • Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Franscico, Interior da Bahia, cronista de ABCD REAL, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro. Entre seus maiores sucessos como compositor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra vez na estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá) , “Espanhola” (com Flávio Venturini), Dona e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas.

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