Guttemberg Guarabyra
Mas acovardar-se e fraudar um julgamento em virtude de o autor representar um país de bloco político não alinhado ao da ditadura, nem pensar.
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Tive a virtude de, aos 19, em pouquíssimo tempo dar um pulo gigantesco. De office-boy a capa de revistas num piscar de olhos.
Venci a fase nacional do Festival Internacional da Canção, um dos maiores do mundo naquela época.
Chico Buarque em terceiro, Milton Nascimento em segundo, Pixinguinha em décimo, Vinícius de Moraes em quarto e eu, saindo da adolescência, magricela assustado, em primeiro.
A façanha, porém, não foi suficiente para completar o voo que me possibilitaria seguir a vida e a carreira em outro patamar.
Bastou que meu pai, pastor batista do interior, provocado por um repórter enquanto minha figura surgia estampada nas capas das principais revistas ao lado de Henry Mancini, Kim Novak, Quincy Jones, (que concorrera comigo na fase internacional do festival, ficando em segundo lugar e eu em terceiro), especulasse se eu já havia comentado em casa sobre a existência de pagamentos para que músicas fossem executadas na mídia — famoso jabá —, e ele respondesse que sim, que de fato eu já havia comentado o assunto (era uma questão que estava em pauta na mídia da época), para que meu voo fosse abortado.
Os disc-jóqueis de todo o Brasil, liderados pelo mais notável deles, decretaram que, a partir daquele instante, a partir daquela declaração do meu velho, nenhuma de minhas músicas seriam mais executadas em nenhuma emissora do território nacional.
Foi um golpe duro que não desejo a ninguém. Muito menos para quem esteja aos 19 e no iniciozinho da carreira.
Meses depois, quebrado, falido, pedi emprego na televisão.
A velha TV Tupi do Rio me acolheu.
Comecei como produtor musical de programas de menor importância, mas logo subi de posto até assumir a direção musical do programa Bibi Ferreira, uma de suas maiores audiências.
Daí até a Globo foi um pulo. E calhou de ser contratado justamente para dirigir o mesmo festival em que havia surgido.
A época era inglória para os festivais de música.
A ditadura implacável tolhia as melhores obras, mas resistíamos.
Até que, num gesto decepcionante, um dos diretores da rede modificou o resultado do júri popular do festival, de modo a promover o Brasil (eram 30 países concorrentes) para o primeiro lugar, quando a soma dos votos dos jurados o classificavam em segundo.
Enfrentar a censura com artimanhas, referências indiretas nos poemas, dribles, fazia parte.
Mas acovardar-se e fraudar um julgamento em virtude de o autor representar um país de bloco político não alinhado ao da ditadura, nem pensar.
Não só deixei o Festival como também ajudei a encerrá-lo definitivamente.
E voltei à música e ao voo — que finalmente decolou.
Música do dia.
- Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Franscico, Interior da Bahia, cronista de ABCD REAL, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro. Entre seus maiores sucessos como compositor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra vez na estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá) , “Espanhola” (com Flávio Venturini), Dona e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas.