Náufrago

In ABCD, Artigo On
  • Guttemberg Guarabyra

Foi um raio!

A bola de borracha tine contra a parede. Emite, além do timbre principal da pancada, um som mais agudo que uma flauta, um gemido fino no eco. Outro chute, outro tiro contra a parede e outro gemido a morrer na audição, a desaparecer no ar.

O chutador, brilhante, pega a bola sempre de primeira. Tem talento, tem futebol, como dizem os locutores esportivos. Vai pousar na casa por dois dias e depois ver como é que fica. Se os homens aparecerem de novo, não fica. Não é o bastante fugir dele próprio, de si mesmo, de suas lembranças. Tem mais isso. Precisa ficar atento.

Nota o garoto olhando-o atentamente, prestando atenção em cada detalhe do chute, no erguer da perna pelo joelho, na flexão, no esticar aplainado do peito do pé, como uma raquete, na força, no pegar-de-jeito-na-bola, na técnica enfim. Sente-se confortado com a companhia do fã e irmão menor, que aceita com prazer o convite para servir de goleiro.

O garoto se posiciona, excitado, no gol improvisado. As traves são o fim da parede e a escada. Começa chutando devagar. O pequeno mano é um menino arrojado, atira-se com coragem, cai bem, é leve.

Tomara que consiga passar-lhe tudo o que tem para ensinar. Se os tempos fossem outros, se não houvesse acontecido aquilo, teria toda a condição de curtir o menino, para ensinar, e também de cuidar da casa. A mãe ficou só. A mãe e o garoto ficaram sós. Desprotegidos.

Sente um olhar na nuca. Medo. Volta-se devagar, como um bicho em estado de alerta. O menino, sem entender, fica esperando a bola. Ele surpreende o policial procurando disfarçar-se por trás da porta do armazém do outro lado da rua.

Já souberam de sua volta. Já está sendo vigiado. Solta a bola no ar e a chuta com força demasiada. A bola tine na parede logo atrás do garoto, quase o atinge no rosto. Atrapalha-se entre continuar vigiando o caçador e dar atenção ao menino assustado.

Pede desculpas, o menino de olhos esbugalhados admira-se: “Nem deu pra ver!”. Só assim para sorrir. Encaixa a mão na nuca do pequeno e sai conduzindo-o em direção à escada da varanda. A mãe já está no topo.

Ela também já notara o caçador. E treme de medo. Medo. Sobe a velha escada de degraus de vermelhão, para na varanda e a abraça. Está marcado. A prisão é um navio em alto-mar de onde só se sai para ser náufrago.

Ficam ali abraçados. Náufragos. O caçador vigia-o. Não há mais amigos, nem mesmo entre os antigos companheiros da mesma rua. Não há mais porto, não há mais vida. Só a esperança sufocada de náufrago.

O garoto vem lá de dentro saboreando alegremente um pedaço de pão com manteiga. Ainda se lembra do chute, elogia: “Foi um raio!”.´

  • Do livro ‘Teatro dos Esquecidos”.

Música do dia

 

O QUE É QUE HOUVE

  • Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Franscico, Interior da Bahia, cronista de ABCD REAL, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro. Entre seus maiores sucessos como compositor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra vez na estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá) , “Espanhola” (com Flávio Venturini), Dona e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas.

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