As malas das chaves

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Guttemberg Guarabyra

Todo edifício deveria ter um bar no térreo, para essas horas

Viajar, viajar, uma ou duas noites em hotéis diferentes, palcos diferentes, pessoas diferentes.

Aeroportos cada vez mais distantes, cada vez menos horas de sono, sonolento nas salas de espera, esgotado nos ensaios, mas organizar o tempo de modo que, ao chegar no camarim, esteja alerta, desperto, ciente de que há, mais do que missão, um prazer a cumprir.

Depois da jornada, finalmente a volta ao lar, ao travesseiro que sabe de cor o formato de seu descanso.

Cansado em razão de mais uma noite sem o necessário período de sono profundo, despejar a bagagem na calçada, subir os degraus (há cada vez mais degraus a subir quanto mais pesada estiver a mala), suspirar profundamente de alívio ao preparar-se para abrir a porta que guarda toda sua saudade. E não achar as chaves.

Sentar-se desolado no chão do hall.

Chorar não vale. Muito pior se acontecesse num tempo anterior ao celular e ao bendito seguro residencial.

É conformar-se. Ativar o seguro, aguardar a chegada do chaveiro.

Todo edifício deveria ter um bar no térreo, para essas horas.

Se houvesse o chope ao lado da portaria, aposto que muita gente até perderia as chaves de propósito.

Mas não era o caso.

Finalmente chega o sujeito uniformizado, abre a mala de ferramentas. Sou avisado novamente de que aquele tipo de fechadura exige substituição total, e não apena troca de segredo.

E que, naturalmente, o dispositivo será cobrado à parte.

Com o estoque de paciência ao nível do pé, quase descarrego o mau humor em cima do salvador a quem devo meus próximos momentos de abrigo e felicidade.

Apenas digo que concordo, que pago, que se desejasse até abriria o violão e tocaria duas ou três do Tom, do Vinícius, do Djavan, ou quem sabe, se preferisse, A Carta, de Waldick Soriano, que sei de cor e salteado desde as primeiras serenatas em Bom Jesus da Lapa.

Mas que me abrisse logo a porta.

Finalmente o milagre é concretizado. Entro, tomo uma Coca-Cola, lembro de Caetano, ‘eu tomo uma Coca-Cola ela pensa em casamento’, mas o que desejo mesmo é dormir profundamente.

Horas mais tarde, refeito, feliz, inscrevo o episódio no rol das histórias engraçadas que ecoarão nos próximos camarins.

Abro a mala, e a primeira coisa que vejo são as chaves que havia perdido.

 

Música do dia

  • Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Franscico, Interior da Bahia, cronista de ABCD REAL, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro. Entre seus maiores sucessos como compositor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra vez na estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá) , “Espanhola” (com Flávio Venturini), Dona e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas.

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