Grande Antenor

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  • Guttemberg Guarabyra

O pastor proferiu um esplêndido porém rápido sermão altaneiro e tchibum, lá estava eu imerso, nervoso, de respiração presa. E logo a seguir, completamente cego, de volta à superfície, tentando tirar a água dos olhos, procurando trôpego a beirada salvadora do tanque

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Fazendo sua palavracruzadazinha, hein?

Atravessando a Baía da Guanabara numa das barcas da antiga Cantareira, de volta a Niterói, de onde havia saído bem cedinho para entregar um vestido que minha mãe, costureira, confeccionava para minhas tias da Ilha do Governador, divisei, umas dez fileiras de assentos à frente, o inconfundível Antenor.

Amigo de minha família, membro da mesma igreja batista que frequentávamos, sua principal característica era a altura.

Media quase dois metros. O que naquela época, em que raros adultos eram tão altos e os adolescentes ainda eram magricelas e pouco turbinados, ao contrário dos de hoje que aos dezessete já se transformaram em verdadeiros galalaus, Antenor se destacava pelo tamanho.

E também pela magreza elegante. Um cara realmente esbelto. Além do mais, expressava-se sempre num tom de fala tranquilo, que tinha tudo para destoar do sujeito enorme, mas que no entanto harmonizava-se perfeitamente com o conjunto.

A conversa era sempre inteligente. Não adiantava puxar assunto trivial com ele. No terceiro ou quarto minuto, Antenor já tinha, da maneira mais simpática possível, feito com que você esquecesse o que vinha dizendo e o papo já havia tomado a direção do espaço — finito ou infinito? —, Freud, Roma antiga, arquitetura, arte. Enfim, Antenor não admitia papo furado.

Outra coisa marcante e inconfundível na silhueta do amigo ilustre e ilustrado, era a cabeça comprida.

Isso mesmo. Era como se alguém lhe houvesse tirado uma foto e depois a distorcido na vertical, espichando-lhe o rosto. Antenor era único.

Quando a pequena Igreja Batista Betel, onde inclusive fui batizado. Mas aqui, faço um parêntesis.

Tinha meus oito, nove anos quando oficialmente me converti.

Digo oficialmente porque, como filho de pastor, a hora de meu batizado havia de acontecer mais cedo ou mais tarde.

Mas eu quero é falar do mergulho.

Meteram-me num traje estranho, quase um vestido. Entrei na pequena piscina construída atrás e acima do púlpito da igreja, para que todos pudessem apreciar os batizados, descendo os degraus pequenos de um dos cantos.

Pus as mãos em posição de reza e as comprimi com firmeza. Quanto a isso havia sido instruído antes, já que o pastor que me afundaria na água precisava daquele ponto de apoio.

O pastor proferiu um esplêndido porém rápido sermão altaneiro e tchibum, lá estava eu imerso, nervoso, de respiração presa. E logo a seguir, completamente cego, de volta à superfície, tentando tirar a água dos olhos, procurando trôpego a beirada salvadora do tanque.

Acho até que aplaudiram, mas não tenho certeza.

Também não lembro, mas apesar de não lembrar tenho a mais absoluta certeza de que Antenor estava no recinto. Não ia perder essa do seu grande e mirim amigo.

Bem, e agora, na grande barca de travessia da Baía da Guanabara, algumas fileiras de poltronas à frente, lá estava meu grande amigo altão. Uma figura.

Resolvi aproximar-me vagarosamente e fazer-lhe uma surpresa.

Coloquei-me às suas costas, e olhando por cima de seu ombro vi que estava de pernas cruzadas, com um jornal apoiado no joelho, muito distraído e atento, caneta na mão, completando um jogo de palavras cruzadas.

Ao apoiar a mão na ombreira do terno elegante do amigo, ele teve um sobressalto e olhou para a frente assustado. E antes que se voltasse e visse quem o incomodava, comentei:

— Fazendo sua palavracruzadazinha, hein?

Virou-se para mim. Não era o Antenor.

 

Música do dia.

  • Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Franscico, Interior da Bahia, cronista de ABCD REAL, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro. Entre seus maiores sucessos como compositor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra vez na estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá) , “Espanhola” (com Flávio Venturini), Dona e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas.

 

 

 

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