- Guttemberg Guarabyra
Há sempre um momento que a gente não esquece. Às vezes acho que sou autista. Desses que têm sintomas que também acometem pessoas ditas normais, que todos acham que é apenas esquisitice, mas que, se examinado por um especialista, o diagnóstico pode ser autismo. E a desconfiança não vem só do fato de lembrar de detalhes mínimos acontecidos há setenta anos, como inclui também o comportamento na infância, sempre preferindo ficar só. Em Xique-Xique, cheguei a levar surras em razão de desaparecer por horas, e jamais me emendei. Amanhecia, tinha lá meus 4, 5 anos, era visto zanzando no velocípede depois do café da manhã, e, quando a família se reunia para o almoço, não adiantava chamar, procurar. Estava longe. A maioria das vezes, nos fundos da casa, que dava para uma rua de trás, numa interminável conversa comigo mesmo. Outras, tinha fugido realmente para longe, atrás do almoço na casa de minhas avós de criação, na verdade mãe e avó de uma de minhas irmãs adotivas, que moravam a vários quarteirões de distância, numa casa humilde, de chão batido, onde o almoço era servido sem mesa, sentados mesmo no chão, e onde se comia com as mãos. O sabor era incomparável. Alguém há de dizer. Mas, e a higiene? Total. O alimento era sempre preparado na consistência correta para que, depois de servir a quantidade necessária em cada prato, usando apenas uma das mãos, pudéssemos formar bolinhos delicados, na medida de sua própria boca e vontade de comer. E que vontade de comer dava aquele perfume de coisa boa que só minhas avós postiças sabiam como preparar. Depois era lavar as mãos e ir pra casa. E levar aquela surra.
No meu livro Teatro dos Esquecidos, escolhi como abertura um texto que produzi fazendo uma viagem no meu próprio tempo até entrar no mesmo transe em que me recolhia quando o desaparecimento era para a rua de trás da casa, no beco pequeno em que quase ninguém passava. Tentei me concentrar e me ouvir pensando, e disposto a me desvendar, a me descrever. De olhos fechados, despejei tudo o que me vinha, teclando desesperadamente para o computador. Ao voltar da viagem, lá estava ele, digo, lá estava eu sendo autista. Ou não. Quem sabe apenas um menino esquisito que gostava da solidão, amava o almoço ao redor da toalha de mesa estendida no chão batido e nunca ligou para apanhar pelo gosto de viver da maneira que o fazia sentir melhor o prazer da vida.
Eis o texto.
Tinha de ficar calado. Quando se punha calado, o mundo ia embora. Precisava ficar calado até não enxergar nada. Calado até não viver, não presenciar nada de novo nem de velho. Calado até se ausentar, até chegar ao fim dos mundos, em silêncio, viajando, calado. Enquanto permanecesse calado, a vizinha chata não existiria nem rua nem ladeira de terra nem farmácia da esquina nem bairro nem cidade. Não haveria trens enquanto estivesse calado. Nem água nem lodo nem cimento. Nem grama, terra preta molhada, nem as trepadeiras de maracujá, nem os galhos da bertalha — nada — nem mesmo o muro, nem os vizinhos dos fundos, nem a frente da casa, nem os quartos, armários, nem a mãe cozinhando chamando para dentro. Nem mesmo mãe haveria enquanto ficasse calado. Calado, falava por dentro, sozinho. Recitava estrofes de ódio, de amor e, às vezes, até de vingança. Palavras que não existiam. Sons irreais. Dormiria e acordaria mudo. No dia seguinte, todos aflitos perguntariam: “O que houve com você?”. Jamais responderia. Seria uma rocha. Denso, enigmático, profundo, até o fim.
Música de hoje.
- Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Franscico, Interior da Bahia, cronista de ABCD REAL, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro. Entre seus maiores sucessos como compositor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra vez na estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá) , “Espanhola” (com Flávio Venturini), Dona e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas.