Aplicativo ajuda comunidades a monitorar enchentes e fornece dados para prevenir desastres

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Alunos em Balneário Rincão (SC) manipulam aplicativo Dados à Prova D’Água; envolvimento de comunidades no desenvolvimento ajudou mapeamento de áreas suscetíveis a enchentes (foto: Rosinei da Silveira)

André Julião | Agência FAPESP – Um aplicativo pode mudar a forma como comunidades e órgãos governamentais lidam com as enchentes. Com um telefone celular em mãos, moradores de bairros vulneráveis a inundações podem não apenas se informar com antecedência sobre possíveis eventos do tipo como contribuir com os órgãos competentes no mapeamento de áreas suscetíveis e na prevenção de desastres.

A ferramenta é um dos desdobramentos do projeto Dados à Prova D’Água, parceria entre as universidades de Glasgow e Warwick, no Reino Unido, Heidelberg, na Alemanha, do Centro Nacional de Monitoramento de Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) e da Fundação Getulio Vargas, com apoio da FAPESP.

“O princípio básico é de que tecnologia, engajamento das pessoas, geração, uso e circulação de dados melhoram a resiliência das comunidades vulneráveis a desastres socioambientais. Neste caso, inundações”, explica Maria Alexandra da Cunha, professora na Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (EAESP-FGV), coordenadora da parte brasileira do projeto.

Levantamento realizado em 2020 pela Confederação Nacional dos Municípios (CNM) contabilizou 1.697 decretos de emergência ou estado de calamidade pública por conta de chuvas intensas naquele ano.

Segundo a área de Defesa Civil da CNM, os prejuízos chegaram a R$ 10,1 bilhões, decorrentes de tempestades, ciclones, deslizamentos, inundações, enxurradas e tornados, sendo o setor de habitação o mais afetado, com 280.486 moradias danificadas ou destruídas e prejuízos de R$ 8,5 bilhões.

O aplicativo Dados à Prova D’Água, que tem o mesmo nome do projeto, foi testado por professores, estudantes, agentes da Defesa Civil e moradores em mais de 20 municípios nos estados de Pernambuco, Santa Catarina, Mato Grosso, Acre e São Paulo e deve ser disponibilizado em breve na Play Store, loja virtual de aplicativos da Google.

Para alimentar o aplicativo, os pesquisadores usam o princípio da ciência cidadã. Alunos de escolas públicas passam por um treinamento, que envolve a construção de pluviômetros artesanais, usando uma garrafa PET e uma régua simples.

Cada estudante fica, então, responsável por verificar diariamente a quantidade de chuvas medida por cada um desses pluviômetros e inserir as medidas no aplicativo, que vão para o banco de dados do projeto. Espera-se que esses dados possam futuramente ajudar a subsidiar medidas de prevenção a desastres.

“Os dados necessários à gestão de riscos de desastres fluem tradicionalmente de forma unidirecional, dos centros de expertise para a população e órgãos executores. O aplicativo possibilita ampliar esse fluxo, pois promove a participação direta da comunidade nos processos de gestão e amplia a fonte de dados locais dos centros especializados”, afirma Mário Martins, pesquisador vinculado ao projeto, que realiza o pós-doutorado na EAESP-FGV com bolsa da FAPESP.

A aplicação permite ainda enviar informações sobre áreas alagadas, intensidade de chuva e altura da água no leito do rio, além de conter dados disponibilizados por órgãos como as áreas de suscetibilidade do Serviço Geológico do Brasil (CPRM) e dados pluviométricos do Cemaden, para uso dos moradores das comunidades.

“Não queríamos apenas desenvolver um aplicativo. Durante nossas atividades nas áreas de estudo, nos preocupamos em discutir como o aplicativo poderia ser utilizado pelos moradores durante os desastres. Por isso, acabamos desenvolvendo um novo método de desenvolvimento de software e uma ferramenta que pudesse ser usada por todos”, conta Lívia Degrossi, que realiza pós-doutorado na EAESP-FGV.

A pesquisadora desenvolveu a aplicação em colaboração com profissionais do Cemaden, da Defesa Civil e da Secretaria de Meio Ambiente do Acre. Participaram ainda estudantes das escolas estaduais Renato Braga e Vicente Leporace, no Jardim São Luís, na cidade de São Paulo, e moradores do bairro, que fica no M’Boi Mirim, área do município com maior número de regiões de risco, segundo o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT).

Memórias de enchentes

“Trabalhamos em escolas públicas com baixos índices socioeconômicos e com histórico de inundações. O Jardim São Luís, com muitos córregos e montanhas, é bastante vulnerável aos alagamentos, mas também a desmoronamentos. A ideia era criar dados e promover a circulação dos que já existem, aqueles que os órgãos governamentais têm, mas não chegam às comunidades”, informa Fernanda Lima e Silva, que realiza estágio de pós-doutorado na EAESP-FGV com bolsa da FAPESP.

Junto com Degrossi, a pesquisadora coordenou a construção de um guia de aprendizagem para o desenvolvimento de uma disciplina eletiva, a ser oferecida por escolas públicas, preferencialmente com estudantes de ensino médio, sobre prevenção de desastres, ciência cidadã e o impacto das mudanças climáticas no dia a dia das pessoas. A rede de colaboradores envolveu professores das escolas participantes do projeto e do Cemaden Educação, que vai disponibilizar o guia em seu site.

Além da prevenção de desastres, o projeto trabalha com memórias das enchentes. Inicialmente, os estudantes do Jardim São Luís entrevistaram parentes mais velhos e levaram para a sala de aula histórias que acabaram fornecendo dados sobre o passado das enchentes na região.

Também foram realizadas rodas de conversa com os moradores mais antigos e até mesmo a produção de uma série de minidocumentários chamada Memórias à Prova D´Água, disponível on-line https://youtu.be/0J68ipWcZZg.

O trabalho contou com a parceria de pesquisadoras da Universidade de Warwick, que desenvolvem pesquisa sobre memórias de desastres com o objetivo de aumentar a resiliência comunitária.

A experiência rendeu ainda um capítulo de livro, que será publicado em uma edição especial sobre memórias e sustentabilidade do Bulletin of Hispanic Studies, a ser publicado em 2023.

“Fizemos também um mapeamento de percepção de risco em que os próprios moradores colocavam as áreas suscetíveis no mapa. É um conhecimento muito mais detalhado do que o feito pelos órgãos competentes. Consegue-se chegar ao nível da esquina do bairro e com isso foi detectado um problema forte com enxurradas, por exemplo”, conta Lima e Silva.

Os pesquisadores realizaram ainda oficinas da ferramenta de mapeamento colaborativo no OpenStreetMap https://www.openstreetmap.org/, que tem licença de uso gratuita e permite que os usuários acrescentem informações aos mapas. O objetivo era mapear o bairro, chamando atenção para as enchentes e os riscos de deslizamentos de terra.

Neste ano, o grupo vai lançar um manual para que o programa possa ser implementado em mais localidades do país. “É muito importante que as pessoas se engajem com os dados, desde a sua geração até o uso. Esperamos poder contribuir para espalhar essa prática e aumentar a resiliência desses locais, uma vez que eventos extremos estão se tornando cada vez mais comuns”, encerra Cunha.

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