Viajando na maionese

In ABCD, Artigo On
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Guttemberg Guarabyra*

“Gosto não se discute.” A frase é discutível. E o gosto também, evidente. Mas, no caso do Wilson com a maionese, não. Wilson não aguenta sequer ouvir falar em maionese, quanto mais gostar. Por duas vezes pôs na boca, por engano, e em ambas baixou ao hospital. No caso dele, o gosto, ou o mau gosto da maionese é indiscutível. E tem de estar sempre alerta, já que: “Em todos os lugares, ‘eles’ põem maionese, Guará, em tudo!!!”. Segundo Wilson, eles é qualquer um que consiga conviver com essa coisa chamada maionese. E cita desde os fast-foods até as churrascarias-rodízio. “Antigamente…”, fala e passa a mão no estômago num prenúncio de mal-estar, “… ia-se a uma churrascaria e comia-se carne sossegado. Agora, tenho que segurar o enjoo, pois ‘eles’ pegam ‘aquilo’ no bufê e vêm comer na minha frente!!!”

Tratei de interromper, tentando direcionar o papo para o lado da música e do som (Wilson é engenheiro de som, um dos melhores deste país); porém, logo vi que a lembrança insistia — e o obrigava a acariciar de novo, aflito, o estômago. “Uma vez…”, diz enquanto joga a cabeça para trás, como se repudiasse uma imaginária travessa de maionese, “… uma vez compareci a um jantar.” Tento mudar de assunto, mas o amigo está prisioneiro da lembrança e, para livrar-se dela, parece que terá de expelir do pensamento, num vômito virtual, a maionese virtual. Do contrário não conseguirá acalmar-se. Só me resta então cruzar os braços e dispor-me a assistir ao ímpeto verbal.

“O negócio é o seguinte”, recomeça, “eu gravei um disco que deu muito trabalho. O maestro [era um disco orquestral] ficou tão contente com o resultado que nos convidou, a mim, ao pessoal do estúdio e aos músicos, para um jantar de comemoração em sua mansão no Morumbi. Cheguei atrasado e, quando me atendeu à porta, percebi que já estavam jantando. Juro que estava morto de fome, mas, ao entrar na sala, vi que o jantar consistia apenas e unicamente numa montanha de maionese. Mas montanha mesmo!!!” Afastei-me, assustado. Achei que ia acontecer. Felizmente foi só ameaça. Enojado, continuou: “Só deu tempo de perguntar onde era o banheiro. Saí correndo, empurrando todo mundo, sem cumprimentar ninguém. Guará!”, berra, “eu vomitei de estômago vazio!!!” Corre à janela, toma ar, tenta acalmar-se.

Imediatamente aproveito a deixa do disco orquestral para mudar de assunto e pergunto: “Lembra-se do Festival Internacional da Canção e daquela grande orquestra?”. Lembrava-se. Sem perda de tempo emendo a história do pianista mineiro, muito chegado à bebida — e a porres engraçadíssimos —, que, em um dos FICs, começou a imitar Sérgio Bittencourt, compositor de uma das canções classificadas.

Sérgio, entusiasmado com a interpretação da cantora que defendia sua canção, tentava ajudar o maestro a reger a grande orquestra. Sabia a orquestração de cor e gesticulava de acordo com ela. Nas pausas, caprichava fechando a mão bem depressa como se conseguisse calar ali, na palma da mão fechada, toda uma orquestra. No instante exato em que os músicos atacavam de novo, ele voltava a abri-la, simulando soltar o som como quem liberta um passarinho, para prendê-lo de novo na próxima pausa. Wilson já sorria. Bem, o fato é que o pianista bêbado conseguia parodiar perfeitamente Bittencourt, provocando uma explosão de risos. Daí e para o resto da noite, guardava sempre, na mão fechada, uma multidão de músicos — cujo som sempre libertava de surpresa, enquanto berrava um ataque de orquestra.

Era hilariante. Após o festival, fomos a uma recepção em uma casa grã-fina. Em dado momento, à beira da piscina, o pianista enfiou a mão fechada na água e a abriu submersa, enquanto emitia uma espécie de glub-glub musical: simplesmente estava a afogar a grande orquestra! Wilson já gargalhava. Chegada a hora da ceia, ele continuava a tocar a orquestra, no copo de uísque, no balde de gelo. O brinquedo só acabou quando ele exagerou e a executou dentro de uma travessa enorme de… Parei e engoli o que ia dizendo. “Maionese!!!”, sacou Wilson. “Não disse?! Tem maionese em tudo!” Antes que enjoasse de novo, tratei de mudar de assunto e encontrar alguma outra lembrança em que, para chegar até ela, não tivesse que, novamente, viajar na maionese.

Música do Dia:

*Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Francisco, Interior da Bahia, cronista de ABCD REAL, publica, às segundas e sextas-feiras crônicas de seu livro “Teatro dos Esquecidos” e outras. Esta crônica, “Viajando na maionese”, está nas páginas 233 e 234 dessa publicação imperdível. Músico, compositor, escritor e poeta brasileiro. Entre seus maiores sucessos como compositor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra Vez na Estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá), “Espanhola” (com Fávio Venturini), Dona e muito mais. Escreveu da mesma forma O Outro Lado do Mundo, além de inúmeras crônicas publicadas na grande imprensa, entre elas o Diário Popular.

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