Uma rocha no caminho

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  • Guttemberg Guarabyra

Um dia, em Três Pontas, na casa de Milton Nascimento, ele me mostrava as plantas bem cuidadas pela mãe. Disse a ele que também gostava de cuidá-las e ele, duvidando, falou que todo mundo diz isso, mas que cuidar é muito diferente. É cuidar mesmo.

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Lembro de uma crônica de Nelson Rodrigues em que lamentava a morte de um de seus irmãos, esmagado em casa juntamente com a esposa, o casal de filhos e a sogra, por uma rocha que se desprendeu de um morro, no Rio.

Não lembro se narrou alguma cena do acidente, se houve repercussão pública, nada. O que recordo, o que me marcou foi ele ter captado o retrato de um momento que praticamente mora congelado em minha mente desde que li a narrativa.

O momento captado era o pequeno segundo de relógio antes da tragédia.

Ele imaginava o irmão em família, cuidando do cotidiano, alheio à pedra, à rocha gigante que deslizava lentamente em direção ao abismo e ao massacre.

Era noite.

O fato de se mover à noite dá ao momento um ar extraordinário de emboscada.

Teria alguma das vítimas sido assaltada por algum pressentimento? Alguém teve aquela sensação de que, no escuro, alguma pontaria mirava-lhe a nuca?

Levanto de manhã e tomo um café. Às vezes até mesmo antes do café faço uma visita às plantas. Ponho um dedo na terra, sinto quais necessitam de água, como se fosse capaz de regar apenas alguma delas. Molho todas.

Tenho um joelho doente, mas não desanimo. Passo todas em revista e em todas deixo um afago.

Um dia, em Três Pontas, na casa de Milton Nascimento, ele me mostrava as plantas bem cuidadas pela mãe. Disse a ele que também gostava de cuidá-las e ele, duvidando, falou que todo mundo diz isso, mas que cuidar é muito diferente. É cuidar mesmo.

A bem da verdade ele estava certo. Naquele tempo eu ainda não cuidava tanto. Só com o tempo, e em razão de acabar vivendo nesse apartamentozinho pequeno, mas que tem uma área ensolarada, é que venho mesmo tratando delas amiúde.

Mas de uns tempos para cá tenho sentido uma interferência nessa lide diária.

Aliás, nem sempre diária, já que as viagens estão voltando, shows, entrevistas, programas de televisão (odeio aparecer na TV, mas faz parte), e já pressinto a hora de arranjar alguém para revezar comigo na tarefa.

E não pressinto apenas isso. E é aí que surge o problema.

Às vezes acordo, tomo café, molho as plantas e me sinto meio como aquela família ameaçada pela rocha.

Claro que não da mesma forma que ela, pois que ali não havia o mínimo indício de que estavam se dando conta de algum pressentimento.

Porém, no meu caso, eu acho e não acho sinto e não sinto que alguma coisa está pra acontecer.

Por enquanto julgo ser apenas uma ameaça ao meu estado de espírito.

No entanto, há quem diga que o estado ameaçado é outro.

E às vezes nem tenho dormido temendo que alguma tramoia esteja sendo armada. E que uma grande rocha começa a ser movida, e vai descer ladeira abaixo rolando sobre nossas vidas antes do amanhecer.

 

Música do dia.

  • Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Franscico, Interior da Bahia, cronista de ABCD REAL, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro. Entre seus maiores sucessos como compositor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra vez na estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá) , “Espanhola” (com Flávio Venturini), Dona e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas.

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