Por Guttemberg Guarabyra*
A luz azulada do céu inspira. No cair da tarde, misturada aos tons dourados vindos do poente, é generosa com a alma, espalhando um mundo de estímulos que fecunda a atividade criadora da mente, acalma, estende nossa saudade ao infinito, comove, apaixona. Pela manhã, ela, manhosamente, insinua-se pelas venezianas e chega aos nossos olhos, nos mínimos intervalos do sono que em breve vai despertar, como um aviso de que, lá fora, começa tudo de novo; de novo a vida nos aguarda, de novo o aroma suave do café fresco vai se fazer presente, de novo o calor da xícara transmitirá conforto às nossas mãos ainda frouxas do descanso noturno, e sorveremos de novo o dia e seremos novos, de novo.
Se me pedirem para decidir a qual dos dois momentos azuis do firmamento dou primazia, direi que, apesar de o azul e dourado da ave-maria me fazer calar submisso diante de tanta beleza e mistério, é o azul da manhã, prematuro e cedo, que prefiro curtir, sentir, desfrutar tranquilo, como estou agora, banho tomado, cabelos úmidos, antes de fechar a mala e viajar.
Ainda menino, no sertão em férias, quando acordado pelos sussurros de meu velho, suavemente chamando-me para o dia que manso e manso chegava, aprendi que a hora matinal, quando era prenúncio de viagem, de aventura, era mais bem-vinda que a hora da tarde. Claro que, no alvorecer, havia o problema eterno da preguiça do corpo menino querendo mais horas de repouso para se refazer do dia intenso de brincadeiras. Mas, como existia a expectativa de tomar o jipe, entrar pela estrada ainda antes do clarear — ainda antes do calor sufocante do cerrado e respirando o ar ainda fresco de noite e orvalho —, assim que a consciência acordava para a realidade do que acontecia, o espírito indolente se retirava e logo tomava conta da criança a força irrequieta dos duendes, que me fazia levantar de um só pulo, pronto para a travessia do agreste ermo.
Embora nos primeiros instantes zunisse dentro de minha mente uma inquietude extraordinária, logo, meu pai, dedo nos lábios, indicando silêncio, fazia-me mergulhar na hora mágica do dia precoce. Pé ante pé, ia escovar os dentes. Na ponta dos pés, atravessava o corredor, sem acordar os da casa. Cautelosamente, puxava a cadeira na copa avarandada e, ao som dos primeiros pios dos pássaros, sentia a friagem da manhã, até então escura e de limitado azul no firmamento.
Durante o café, haurido no avarandado distante dos quartos, já se podia elevar a voz um tanto. Meu pai conferia se eu nada esquecera daquilo que poderia fazer falta durante a viagem e que haveria de ser necessário no destino. Repassava, então, a noite anterior na memória: se eu vi minha irmã colocar na mala os sapatos novos, se a camisa de linha inglesa e listada estava lá e se ao menos três gibis dos novos, chegados da capital, completavam a bagagem. Se minha mãe estivesse em casa, certamente nem precisaria me preocupar com isso. Mas era justamente ao encontro dela que partíamos, loucos para ver como tinha arrumado dessa vez a casa, cujo quintal dava para o rio encachoeirado, onde passávamos o período anual de férias, em Correntina. Teriam me mudado de quarto? Será que tinham avisado a Quincas que eu ia? Se já o houvessem feito, certamente o passeio a cavalo estaria então preparado. E, num galope suave e sereno no lombo de uma montaria bem mansinha, chegaríamos à fazenda pequenina e tomaríamos leite ao pé da vaca, encheríamos o bucho de caldo de cana e teríamos uma tremenda dor de barriga.
Que logo passaria, como também passariam rapidamente aqueles dias felizes. Só o que não passaria, não passou e nunca passa são essas lembranças queridas que se escondem dentro de não sei onde. Ora estão no coração, quando por algum motivo sentimos a sensação de que algo daquilo está se manifestando, e o pulso se acelera e o rosto fica mais quente. Ora são como um retrato que aparece e desaparece dentro de nossa alma, espírito, mente.
Haverá ainda a casa branca? Estarão lá ainda a ladeira, o morro e a pedra onde sentávamos a sós? Enquanto a luz azulada lá de fora penetra pelas frestas e mistura-se ao aroma da infusão do café quente, as lembranças se desdobram e eu dobro e redobro na mala as últimas peças dessa bagagem distante e sempre presente.
Música do dia
- Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Francisco, Interior da Bahia, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro, cronista de ABCD REAL, publica, às segundas e sextas-feiras crônicas de seu livro “Teatro dos Esquecidos” e outras.
- O livro pode ser adquirido pelo https://editorathoth.com.br/produto/teatro-dos-esquecidos/106
- Esta crônica, por exemplo, “Suave Azul”, está nas páginas 207 e 208 dessa publicação imperdível, do mesmo nome.
- Entre os maiores sucessos de Guarabyra como compositor e cantor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra Vez na Estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá), “Espanhola” (com Fávio Venturini), “Dona” e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas publicadas na grande imprensa, entre elas, em conclusão, o Diário Popular.