- Guttemberg Guarabyra
Faz sucesso no Youtube um vídeo em que um instrutor de parapente em pleno voo cruza com um urubu, que junto com ele plana sobre a paisagem, aproxima-se, pousa-lhe aos pés.
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Não sei se tenho mais pernas que não bambeiem ao escalar o cruzeiro erigido no alto do morro do Bom Jesus da Lapa.
Para chegar até a base da grande cruz de concreto armado, já se faz necessário um bom esforço.
Que vale a pena. De lá, deslumbra-se uma paisagem única.
A cidade, comprida, estende-se para a direita até a estrada que margeia o São Francisco — rumo abaixo pela correnteza do rio, rumo acima no sentido do mapa. O São Francisco, costumo brincar, desce pra cima.
À sua frente, o rio limita o crescimento. Para o flanco esquerdo, o limite permanece, pois que, embora os terrenos ali não sejam alagados o ano inteiro, não deixam de fazer parte do leito. Nas cheias, interligam lagoas, abrem caminhos de água para que tabuleiros sejam fecundados.
Mas voltemos ao morro.
As rochas calcárias que moldam o morro do Bom Jesus formam esqueletos de escarpas que ajudam as mãos dos escaladores a se firmarem para avançar o passo seguinte.
Para se chegar ao Cruzeiro, foram abertas trilhas, esculpidas escadas nas rochas, e, mesmo sendo uma subida que exige boas pernas, não se compara com a escalada pelas paredes verticais, sem nenhuma trilha predeterminada.
De tanto explorar o morro, escalá-lo, para, na solidão dos platôs do cume, na companhia dos macacos barbados e pitombas, apreciar a cidade, dediquei-me a decorar caminhos que me permitiram percorrê-los até mesmo à noite.
Meu pai, preocupado com o que pudesse acontecer comigo, no início desaconselhava a peripécia. Como jamais foi atendido, passou a proibi-la. Como novamente foi ignorado, comprou um binóculo.
Da rua de casa, tentava divisar-me lá em cima. Jamais deu certo.
Benditas alturas. Olhar horizontes a fugir das vistas. Quase voar.
Faz sucesso no Youtube um vídeo em que um instrutor de parapente em pleno voo cruza com um urubu, que junto com ele plana sobre a paisagem, aproxima-se, pousa-lhe aos pés.
Intrigado, quis saber se eram amigos de longa data ou haviam se cruzado na estrada aérea.
Uma amiga apostou que já se conheciam. Fui conferir. Eram amigos de longa data, companheiros de muitos voos. Acertou em cheio.
Mas quem errou o palpite no morro do Bom Jesus foi um escalador que não conheci. De tanto ouvir falarem como era lépido, capaz, desbravador, como eu, das entranhas daquele mundo calcáreo, e apenas um menino, passei a admirá-lo.
A queda, o palpite errado — ao saltar de uma rocha mais alta tentando alcançar um pequeno platô na beirada da extremidade do morro, não conseguiu diminuir o impulso que o projetou no abismo — me comove até hoje.
Por vezes escalei até o lugar em que Miltinho alçou o voo. Em silêncio o reverenciei.
Ali desejei que durante o voo tenha cruzado com um pássaro amigo. Que tenham feito amizade imediata, apesar de jamais haverem se conhecido.
E que o pássaro lhe tenha emprestado asas.
E que, juntos, tenham subido, subido, subido.
Música do dia.
- Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Franscico, Interior da Bahia, cronista de ABCD REAL, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro. Entre seus maiores sucessos como compositor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra vez na estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá) , “Espanhola” (com Flávio Venturini), Dona e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas.