O Fantástico Abel Ferreira

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Guttemberg Guarabyra

Certa vez o Fantástico convidou a dupla Sá e Guarabyra para gravar uma apresentação ao lado do grande Nelson Gonçalves

Como era difícil pesquisar antes do Google.

E muito pior quando nem sequer havia internet.

Invejo as mentes dos contemporâneos dessas modernidades, leves livres e soltas para pensar no que interessa, sem a mínima preocupação em ocupá-las com buscas tediosas antes de ir direto aos finalmentes.

Imaginem que às vezes precisei tomar um ônibus para, meia hora depois, saltar ainda distante várias quadras da biblioteca em que matava minha curiosidade, e só então vasculhar pilhas de publicações e finalmente encontrar a resposta.

Praticamente um dia inteiro dedicado a responder uma única questão.

Por isso, quando podia, quando não era assim tão urgente saber daquela questão que me atormentava, confeccionava uma lista. Era quase uma lista de compras dessas que muita gente leva ao supermercado.

E aproveitava uma única ida à biblioteca para matar a curiosidade por atacado.

Hoje, saco do celular e nem sequer teclo. Uso a voz. Sem falar que possuo mais de uma Alexa sempre dispostas, dia e noite, a somar, dividir, multiplicar, informar a previsão do tempo e ainda encher a casa com as notas de minhas saudades musicais prediletas.

Ah, e anota lista de compras também.

Certa vez o Fantástico convidou a dupla Sá e Guarabyra para gravar uma apresentação ao lado do grande Nelson Gonçalves.

O quadro que uniria as duas gerações de intérpretes constava de Nelson com seu vozeirão espetacular mandar aos ouvidos e telas do Brasil A Deusa da Minha Rua, a valsa escrita por Newton Teixeira e Jorge Faraj (graças ao Google não tive dificuldade alguma em descobrir os autores), que Silvio Caldas imortalizara, mas que na interpretação de Nelson ficara ainda mais divina.

E, de nossa parte, uma composição feita especialmente para a apresentação em que traduziríamos para a linguagem da época (meados dos anos 70) aquilo que era expresso em A Deusa da Minha Rua. Um tremendo rock pesado que tinha como título (desculpem) Gatinha Maneira.

Na Deusa:

Minha rua é sem graça / Mas quando por ela passa / Seu vulto que me seduz / A ruazinha modesta / É uma paisagem de festa / É uma cascata de luz

Na Gatinha Maneira:

Gatinha maneira do 527 / De cabelo dourado / Queimado do sol do verão / A rua para quando você passa / A rua para (breque) quando você passa / E lá se vai o meu coração

No dia da gravação, já no estúdio, câmeras ligadas, o diretor pediu silêncio e a filmagem começou a rolar.

Mas um ruído causado pelo pessoal técnico ou da produção fez com que a gravação fosse interrompida, o que provocou um ataque de nervos do diretor, que desceu do alto da cabine de controle.

E aos brados, de forma inteiramente estúpida, passou uma esculhambação absolutamente desnecessária na equipe.

Foi constrangedor.

Enquanto retornava à cabine, no estúdio desfez-se todo um alto astral e baixou um silêncio sepulcral.

Ao meu lado, Nelson, trajando um elegantíssimo smoking, pescoço enfeitado com uma não menos elegante gravata borboleta, fez valer seu humor impecável.

Certo de que, diante daquele silêncio, sua voz grave e poderosa ecoaria por todo o ambiente, chamou-me:

— Guarabyra.

Ao que respondi: “Sim, Nelson”.

Nesse ponto, todos estavam atentos ao diálogo. O que diria Nelson?

“Guarabyra”, repetiu. Vendo que me mantinha atento, complementou:

— Eu estou tããão nervoso.

A gargalhada foi geral. Desmoralizou o diretor grosseiro e quebrou o gelo trazendo de volta o bom astral que a gravação havia perdido.

Nelson, nesse Fantástico, estava sendo acompanhado pelo regional do excepcional clarinetista Abel Ferreira. Célebre para quem conhece um pouco da história de nossa música.

Terminada a gravação, fui cumprimentar não só a ele como a todo o regional, e aproveitei para fazer uma pergunta que já havia feito a músicos que não me souberam responder.

Quis saber de Abel quem havia composto Doce Melodia, música pela qual era apaixonado, que ouvira na infância e, sem Google, não conseguia saber da autoria.

Para minha surpresa, Abel se emocionou. Fiquei sem saber como agir. Aquilo me pegou de surpresa. Teria eu feito algo de errado?

Abel, elegante, característica comum de todo pessoal da velha guarda, mostrou como se deve enxugar uma lágrima.

Trouxe do bolso um lenço muito branco, e, enquanto enxugava a lágrima que o incomodava, revelava que era dele mesmo a composição, e que se emocionara sabendo que um compositor de uma geração mais recente amava sua obra.

Se já houvesse Google, não o faria chorar. Em compensação, não o teria homenageado de forma tão emocionante e espontânea.

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Músicas do dia

 

  • Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Franscico, Interior da Bahia, cronista de ABCD REAL, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro. Entre seus maiores sucessos como compositor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra vez na estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá) , “Espanhola” (com Flávio Venturini), Dona e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas.

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