Por Guttemberg Guarabyra
Há um grande mistério em torno do conflito ocorrido em Canudos. Nem Euclides da Cunha conseguiu desvendá-lo totalmente, embora, sem ele, esse episódio talvez nem fosse mais lembrado. O grande enigma é se foi mesmo uma guerra santa e de que lado lutaram os santos: se do lado do governo ou dos conselheiristas. O líder dos sertanejos, Antônio Conselheiro, pregava contra a mudança de comportamento do Estado que começava a se intrometer em assuntos que antes eram da jurisdição exclusiva da Igreja. Pela lógica, portanto, o lado dos santos era o dele. Porém, muito antes da Proclamação da República, quando ainda não existia esse conflito, Conselheiro já tinha sido vítima de grave perseguição, chegando mesmo a ser preso, na Bahia, sob a falsa acusação de ter matado a mãe e a esposa. Conduzido no porão de um navio, para ser julgado em Fortaleza, foi torturado e desembarcou quase morto. “Comprovada sua inocência – informa o historiador e documentarista Antônio Olavo – é libertado e imediatamente volta ao sertão da Bahia.”
Na verdade, os devotos não queriam guerra. Eles apenas formaram um arraial em torno da fé em Antônio Conselheiro, que foi tomando força e crescendo por conta própria em pleno sertão. Cresceu tanto que chegou a ser a segunda cidade da Bahia. A grande autonomia do vilarejo repercutiu Brasil afora, desagradou o poder central, acendeu um sinal de alerta e acabou dividindo a nação em dois lados. “O sertão vai virar mar, e o mar virar sertão”, estribilharia mais tarde Conselheiro, classificando as facções rivais. No lado do mar, na Capital, os políticos começaram a ficar preocupados. A Marinha e o Exército (a Aeronáutica ainda não existia; só o que voava nos céus das batalhas, naquele tempo, eram as balas dos canhões) perguntavam-se se não estaria nascendo ali uma nação independente dentro do Brasil. A própria Igreja se sentia incomodada por testemunhar a perda de fiéis para o religioso sertanejo. O Presidente na época, Prudente de Moraes, era o primeiro civil a ocupar o cargo e os militares ainda exerciam grande influência no Estado. Talvez por isso a solução militarista venceu a disputa sobre o que fazer com o arraial petulante. E assim foi ordenada a destruição da comunidade liderada por Antônio Conselheiro.
O que a princípio parecia uma tarefa fácil transformou-se num grande problema. Canudos respondeu à agressão com sangue, sacrifício, loucura, paixão e santidade. Com o poder (inesperado) da fé, esmigalhou as tropas. O governo, incrédulo, enviou mais tropas. Foram necessárias quatro expedições, metade do efetivo das Forças Armadas para dominar o arraial. Após infligir um número impressionante de baixas à soldadesca, os vinte e cinco mil revoltosos conselheiristas foram, enfim, totalmente exterminados. Depois da aniquilação do Arraial, amarrados e indefesos, os últimos resistentes, entre eles mulheres, velhos e crianças, foram degolados às centenas.
Porém, o mistério de Canudos ainda persiste. Além de saber de que lado lutaram os santos, falta ainda estabelecer quais as verdadeiras origens do confronto. Alguns historiadores afirmam que foi uma campanha municipalista.
De fato, a primitiva cisma entre o beato e a República começou quando o governo central passou a cobrar impostos dos municípios. Na época da Proclamação, Conselheiro ainda vivia em Bom Conselho, Pernambuco, onde dirigia uma ordem leiga de caridade. E dali foi expulso justamente por pregar contra a cobrança dos impostos. Mais tarde, já na administração do por ele criado Arraial de Canudos, recusou-se terminante a pagar os tributos. Em razão disso foi tachado de monarquista. E, como monarquista não tinha moleza nos tempos da recém-constituída República, as lideranças do novo regime teriam visto nisso razão suficiente para expedir a ordem de destruir a comunidade.
Perseguiram os sertanejos menos pelo que de fato eram e mais pelo que representavam.
Não passavam de mais um bando religioso, dentre os muitos existentes no país, na época. Eram pobres, desarmados, rudes. Mas surpreenderam pela coragem e valentia. Enfrentaram os tiros com armas improvisadas e por vezes estrangulando soldados com as próprias mãos, conquistando vitórias no corpo a corpo. Era como se um judas de Sábado de Aleluia se levantasse de entre os trapos e estraçalhasse os malhadores.
De fato, as histórias de Conselheiro e de Judas se cruzam. Muitos dizem que Judas teria delatado Cristo exatamente por ter discordado de sua atitude quanto à cobrança de impostos. Ao ouvir o ensinamento segundo o qual devia dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus, o apóstolo, que lutava contra a arrecadação dos tributos, teria se sentido enganado e traído o Mestre.
O desfecho da luta em Canudos completa cento e vinte e sete anos nesse sábado, 5 de outubro.