“Essa cova em que estás, com palmos medida, é a conta menor que tiraste em vida. É a conta menor que tiraste em vida. É de bom tamanho, nem largo nem fundo. É a parte que te cabe deste latifúndio”.
Eterna apaixonada por Literatura, ela nos ensinou, em primeiro lugar, a ler e a interpretar Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto.
Por isso, a homenagem começa, acima de tudo, com um trecho da obra, neste 15 de outubro, Dia dos Professores, data escolhida por ela para nos dizer adeus, aos 95 anos de idade.
Mestra Benedicta Vasconcellos Franco.
Mais que uma Professora! Formada em Grego e Latim pela USP (Universidade de São Paulo). Mestra em Português e Literatura.
Deu aula para a minha irmã do meio, Maria de Lourdes Alessi Horta, da quinta à oitava série do Ginásio, em São João Clímaco.
Histórias
Eu, desde bebê de colo, frequantava sua casa, no mesmo bairro de São João Clímaco, onde ela recebia os estudantes para ler, estudar, e deixava à disposição de todos os inúmeros livros que tinha (àquela época não havia biblioteca perto de casa).
Aos 14 anos de idade, no primeiro ano do Colegial, em 1973, tive, em primeiro lugar, aula com ela.
No primeiro dia, começou a fazer a chamada, nome por nome, e quando chegou ao “Joaquim Benedito Alessi…” parou. Olhou por cima dos óculos e exclamou: “Quiiiiinziiiiiinhooooo!”
Nem preciso dizer, portanto, que a classe toda virou-se pra mim.
Pior, ela prosseguiu, além disso: “Gente, preciso contar. O Quinzinho frequentava minha casa, e fez xixi no sofá”.
Depois, portanto, de muita algazarra e gozação, ela revelou que isso fora quando eu era bebê, mas vai explicar…
Muito brava
Era brava a Dona Benedicta, como a tratávamos.
Certa feita, derrubei um lápis no chão. “Quinzinho, fale agora os 10 primeiros versos de Os Lusíadas, de Luís de Camões”.
E eu, com as mãos trêmulas, tentando não errar: “As armas e os barões assinalados, Que da ocidental praia Lusitana, Por mares nunca dantes navegados…”, e não vinha o restante.
“Nota Zero!” E ia para a caderneta.
Conclusão, depois de outros deslizes, me deixou para a segunda época.
Decorei Os Lusíadas, Morte e Vida Severina e por aí afora. Tirei 10 na prova e passei para o segundo ano no velho CEPAO (Colégio Estadual Professor Ataliba de Oliveira).
Mas, pensam que eu guardei alguma mágoa, rancor? Jamais.
Santo Agostinho dizia: “Prefiro os que me criticam, porque me corrigem, aos que me elogiam, porque me corrompem”.
No segundo ano não era seu aluno, mas ela continuava a me receber, assim como os demais estudantes, em sua casa. O Professor Azer Paulino, outro Mestre, decidiu que encenaríamos Morte e Vida, e os ensaios eram na casa dela.
Eu, que nunca fui magrelo, muito menos com cara de fome (apesar de a família ser bastante pobre), acabei escalado para ser o… Severino.
A obra magnífica de João Cabral ficaria em minha memória pelo resto da vida, como continua hoje:
“O meu nome é Severino, não tenho outro de pia. Como há muito Severino, que é santo de romaria, deram então de me chamar Severino de Maria…”
É possível encontrar na internet, acima de tudo, textos um pouco diferentes, muitos com erros grosseiros de Português, que João Cabral jamais cometeria. Mas esses que escrevi acima são do texto mimeografado e entregue por Dona Benedicta.
Influência
Minha irmã Maria de Lourdes virou professora por influência dela.
Lembra que a Mestra promovia campeonatos de verbos e exercícios para os alunos acentuarem as palavras e justificarem o acento.
“Incentivava a leitura e reproduzia os textos dos livros como se fora um teatro”, recorda, da mesma forma.
Daria para escrever muito mais, lembrar, além disso, de quando ela levou um grupo de alunos (eu entre eles) para passar uns dias na casa que comprara na Gaivota, último balneário de Itanhaém antes de Peruíbe. Onde eu peguei uma queimadura de sol gravíssima, por jogar futebol na areia sem protetor. E tive de passar a noite sob os cuidados dela e das meninas, com dores inenarráveis.
Mas, o texto precisa ter um fim.
A ideia era, neste 15 de outubro, que ela marcou na folhinha para nos dizer Adeus, prestar, em conclusão, uma singela homenagem:
“À Mestra, com muito carinho”.