Nos bailes da vida

In ABCD, Artigo On

Por Guttemberg Guarabyra*

Brotas de Macaúbas, Bahia. No baile, à luz de lampiões, o toca-discos a pilha, oscilantemente, tocava Altemar Dutra. As moças, vestidas no capricho, aguardavam sentadas quem as tirasse para dançar. Eu, garoto tímido, sentado do lado oposto da sala, tentava em vão disfarçar meu nervosismo. Chegara à cidade, à qual visitava pela terceira vez, havia dois dias juntamente com o velho Guarabyra, em mais uma rodada de acompanhamento de processos que ele advogava sertão afora. Brotas de Macaúbas era minha visita predileta. Fincada no topo da serra, tinha um clima sempre agradável, coisa rara e muito bem-vinda numa região onde a média de temperatura é sempre muito alta.

Desde que começara o baile, cuja figura central era eu, já que tinha sido organizado como festa de boas-vindas em minha homenagem, tratava de observar os pares bailando. Fazia uma espécie de curso intensivo de dança, visto que jamais havia dançado antes e talvez tivesse de arriscar os primeiros passos naquela noite. De religião batista, era-me proibido desfrutar daquele tipo de coisa mundana. Assim sendo, não dançava, não fumava, não bebia. Portanto, pela lógica, não deveria estar ali. Numa cadeira, do outro lado, observei que havia uma menina que ninguém, absolutamente ninguém, tirava para dançar. Logo depois, vi quando meu pai chegou e instalou-se em outra sala, com os donos da casa, mais velhos, que pouco participavam da festa.

Quando uma das anfitriãs me ofereceu a bandeja repleta de pequenos cálices com licores coloridos, fui tentado a aceitar, mas, para tanto, precisava da autorização do velho, que era também pastor batista. Tinha sido ele, na qualidade de pastor e pai, quem havia me liberado para que o baile em minha homenagem fosse realizado. E, do mesmo modo, necessitava agora de sua autorização para dar uma bicada no licor colorido. Sem dúvida, aceitá-lo seria uma atitude diplomática, visto que minha recusa poderia ser confundida com indelicadeza. O baile também, se não tivesse sido permitido, sofreria a mesma crítica. Seria embaraçoso para o velho não permitir que os jovens (e as jovens) da elite local conhecessem o filho do célebre doutor Guarabyra. Ainda mais que, durante as poucas visitas que já tinha feito a Brotas, só era possível encontrarem-me ou metido serra acima, de onde aproveitava para tirar fotos da cidade na minha primeira câmera fotográfica, uma antiga Kodak, ou lendo escondido no hotel.

Voltemos ao baile e ao licor. Quando pus os olhos na bandeja, imediatamente olhei na direção da sala em que o velho estava. Cruzei o olhar com o dele, que me observava pouco atrás da roda de rapazes que esperavam a vez de dançar. Como sempre, havia mais cavalheiros do que damas, o que me fazia ficar ainda mais intrigado com o desprezo dispensado à garota solitária. O velho percebeu a situação em que me encontrava e assentiu com a cabeça, autorizando-me a pegar o copinho. Foi a primeira vez que bebi e o fiz em sua presença. Com o cálice colorido na mão, voltei a fitar a menina bonita e inexplicavelmente rejeitada. Decidi que, se dançasse, haveria de ser com ela.

Após sentir-me mais à vontade, quem sabe devido à bebida, dirigi-me ao velho e consultei-o sobre se deveria e poderia dançar. Novamente assentiu. Larguei então o cálice com ele, que ficou com a bebida na mão sem saber o que fazer com ela, e cruzei o salão direto e reto em direção à dama recusada. Levei-a para o centro do salão, enquanto sentia o alvoroço das atenções voltadas para nós. Dois pra lá, dois pra cá, ao som daquele bolero, sob a claridade frágil dos lampiões a querosene e o som vacilante do toca-discos, os olhos de minha companheira de baile cintilavam. Como ela, do mesmo modo que eu, não dançava bem, julguei ser essa a razão pela qual vinha sendo esquecida. Pior para eles. Como dançávamos em silêncio, apenas nos fitando nos olhos e rindo com nossos erros, a companhia, em razão de minha timidez, vinha a calhar.

Duas ou três músicas depois, acompanhei-a até seu lugar e fui ter com o velho, que, durante a dança, já havia acenado que desejava falar-me. Se fosse para avisar que teríamos de partir, iria até pedir para ficar mais um pouco, pois afinal havia arranjado companhia. Além do mais, ficara curioso para saber mais sobre a dona daquele olhar. Meu pai pediu licença aos demais e levou-me a um canto, onde me explicou que a menina que me encantava tanto era muda, daí toda a atenção extra que estávamos chamando. 

Quando me voltei, vi que ela nos observava. Compreendi, perfeitamente, que sabia do que estávamos tratando. Seu olhar transmitia aflição e uma pergunta que exigia resposta imediata. Olhos fixos nos dela, atravessei novamente as expressões curiosas, firme em sua direção. Enquanto dançávamos outra vez, íamos lendo nos olhos tudo o que havia para dizer. Até o fim do baile rimos, dançamos, ficamos sempre juntos. Dessa forma, a noite, que para ambos havia começado com um sentimento de inquietação e insegurança, transformou-se em um acontecimento iluminado e cheio de poesia, apesar de todas as carências de luz, de som, e até mesmo da fala.

  • Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Francisco, Interior da Bahia, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro, cronista de ABCD REAL, publica no portal crônicas de seu livro “Teatro dos Esquecidos” e outras.
  • O livro pode ser adquirido pelo https://editorathoth.com.br/produto/teatro-dos-esquecidos/106
  • Esta crônica, por exemplo, “Nos bailes da vida”, está nas páginas 149, 150 e 151 dessa publicação imperdível.
  • Entre os maiores sucessos de Guarabyra como compositor e cantor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra Vez na Estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá), “Espanhola” (com Fávio Venturini), “Dona” e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas publicadas na grande imprensa, entre elas, em conclusão, o Diário Popular.

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