Guttemberg Guarabyra
O escritor nada tinha a ver com minha ameaça. O ator, que no futuro se tornaria um dos grandes astros globais, sim
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Eu socava a mesa e os pratos e talheres subiam e desciam, tremelicando. Socava novamente e a cena se repetia.
Sentados à mesa, o escritor, o ator e suas acompanhantes, olhos arregalados, não emitiam som algum. O que se ouvia era a o tilintar dos garfos e facas trepidando a cada pancada, e o som dos pratos chocando-se ao serem impulsionados pela vibração da mesa.
E, naturalmente, meu berro acima de todo o ruído do grande restaurante:
— Vamos lá pra fora que eu vou te fazer de picadinho!
O escritor nada tinha a ver com minha ameaça. O ator, que no futuro se tornaria um dos grandes astros globais, sim
Momentos antes, eu havia chegado para jantar com uma família de amigos negros. Estávamos em festa. Uma das pessoas da família de artistas, minha grande amiga, cantora pra lá de excepcional, havia acabado de conquistar o primeiro grande prêmio na carreira que se iniciava.
Fomos comemorar.
Subimos os dois degraus da entrada. O lugar estava lotado, animado, barulhento, vivo, bem de acordo com nossa alegria naquela noite.
Esticando o pescoço localizamos bem ao fundo uma mesa que poderia nos acomodar.
Já antevíamos o prazer de nos sentarmos e nos servirmos de, no mínimo, uma bela champanhe.
A noite era para brindes, muitos brindes.
Porém, antes que alcançássemos o lugarzinho em que iniciaríamos as comemorações, um brado retumbante ecoou acima do ruído das conversas, chocou-se contra as paredes, chegou aos nossos ouvidos e despedaçou nossa noite alegre:
— Guarabyra! O que você está fazendo com esses urubus?
Era o ator.
Eu e a família nos entreolhamos. Foi duro, inacreditavelmente duro ver em seus olhos a grande humilhação.
Súbito, a noite não era mais a mesma.
De toda forma, seguimos em frente, nos acomodamos. Mas o que era para ser início de uma algazarra feliz, entre nós agora era só silêncio.
Foi assim que da mesma forma como a noite subitamente não era mais a mesma, levantei-me e subitamente também já não era mais o mesmo. Dirigi-me à mesa do ator.
Daí a cena que descrevi. Esmurrava a mesa, o ator, cabeça baixa, mirava os pratos e os talheres subindo e descendo à sua frente ao ritmo das bordoadas que eu infligia à superfície de madeira.
Foi a vez de o restaurante colocar-se em absoluto silêncio.
A família veio me acudir, pedir para deixar para lá, que fôssemos embora. Eu atendi.
O ator fez uma bela carreira. Tornou-se um grande astro. Porém, nossa amizade findou ali. Jamais nos falamos novamente.
Dezenas de anos mais tarde, a produção do Vídeo Show, programa que ocupava o horário da tarde na Globo, telefonou-me.
Iriam prestar uma grande homenagem ao ator da noite infeliz. E queriam que eu comparecesse visto que, por ironia, um de meus melhores trabalhos em trilhas musicais de novelas havia sido tema justamente de um de seus mais aplaudidos personagens.
Não aceitei o convite, dei uma desculpa. Poucos meses depois, ele morreria.
Até hoje não sei se o convite partiu dele, como uma espécie de pedido de desculpas.
Não sei se concederia ou não o perdão. Ainda mais que, quem deveria decidir se o perdoava ou não, deveria ser a família negra ofendida.
Mas nem tudo tem ar de tragédia quando lembro o episódio. Afinal, mesmo estando completamente descontrolado, ao massacrar a mesa gritava um desejo muito racional.
Pois que nada pode ser mais coerente do que, num restaurante, ameaçar fazer alguém de picadinho.
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Música do dia
- Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Franscico, Interior da Bahia, cronista de ABCD REAL, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro. Entre seus maiores sucessos como compositor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra vez na estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá) , “Espanhola” (com Flávio Venturini), Dona e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas.