- Guttemberg Guarabyra
Para satisfazer o estômago, encha primeiro os olhos. E com aquela paisagem única, por mais que engolíssemos o mapa, a impressão que permaneceu foi a de um imenso vazio.
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Aquela culinária caseira, herança que passa de fogão em fogão na cozinha brasileira, sempre suscita altos papos cheios de saudades e temperos.
Ontem foi dia, melhor dizendo, noite, em que eu e o carcamano Chico Calabro revivemos rabadas, panquecas, sobrecoxas, azeitonas (para as panquecas dê preferência às chilenas), cebola bem picadinha pra deglaçar aquela parte que fica grudada no fundo da panela — acabamento perfeito naquele molho.
Conversa vai conversa vem, nem sentimos a viagem. Mas a fome veio aumentando.
A cada prato relembrado, sempre dentro da temática da cozinha caseira de nossas famílias, um imaginário perfume de comida boa invadia o carro e a viagem.
O nevoeiro lembrou a panela fumegante, o vento roçando a fresta aberta da janela virou frigideira estralejando, a moça do pedágio uma fictícia garçonete. “Boa noite. Dois ovos na manteiga” “Mal passados?” Aqui está o seu troco.
Em casa, já madrugada, direto à dispensa e à geladeira. Graças a Deus havia os molhos do Kiko, os melhores molhos caseiros para massas que se pode encontrar em São Paulo, quem sabe até no planeta, e que acabaram por salvar a noite com a mercê de quem salvava uma vida.
O show em Caçapava foi bom de tudo. Convidado por Tuia (que ainda vai estourar, escrevam aí), fiz uma pequena participação.
Como de lá até São Paulo a distância é pouca, resolvemos viajar — eu meu empresário, o carcamano lembrador de comida boa — assim que terminado o show e dormir (e comer) em casa.
O show foi tudo de bom mas preciso dizer que o serviço de camarim foi aquém do desejado. Um sanduiche gostoso, mas único.
Para satisfazer o estômago, encha primeiro os olhos. E com aquela paisagem única, por mais que engolíssemos o mapa, a impressão que permaneceu foi a de um imenso vazio.
Vazio que instintivamente viemos preenchendo na estrada. A cada curva, uma volteada da colher na panela, a cada acelerada um avançar de garfo sobre o arroz soltinho, a cada pausa na conversa a mente lançava um farol sobre a sobremesa.
No final de tudo, bagagem num elevador que jamais subiu de forma tão lenta. Invasão de lar fazendo muito barulho, acordando vizinhos, armários prateleiras.
Água na panela, molho do Kiko, macarrão.
Valeu Caçapava, foi maravilhoso.
E pensando bem, nem posso reclamar da paisagem erma servida no camarim.
Não fosse aquele sanduíche pouco, não faria uma viagem por tantas estradas de saudades e gostosuras. Não teria dormido tão bem e acordado melhor ainda.
Valeu Tuia, valeu a excelente banda que nos acompanhou. Valeu Carcamano, valeu Kiko, valeu cozinha brasileira com todas as suas especialidades cozidas, assadas, douradas.
Mas valeu sobretudo a música brasileira, que ontem degustamos novamente com muito apetite e amor.
Música do dia.
- Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Franscico, Interior da Bahia, cronista de ABCD REAL, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro. Entre seus maiores sucessos como compositor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra vez na estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá) , “Espanhola” (com Flávio Venturini), Dona e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas.