Mais uma pro santo

In ABCD, Artigo On
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Por Guttemberg Guarabyra*

Assisti à Copa do Mundo de 86 viajando pela Serra do Cipó, em Minas Gerais. Boa parte em Conceição do Mato Dentro, cidade em que, na primeira vez em que ali estive, anos antes, avistara um abrigo, espécie de mirante, construído em concreto armado sobre uma colina no alto do morro que domina todo o lugarejo. Fui verificar o que era. Surpreendi-me ao constatar que era um altar erguido em homenagem ao bicentenário da igreja de Bom Jesus do Matosinhos. Só que a autoria do projeto pertencia a Oscar Niemeyer.

Li e reli a placa comemorativa, até entender que o monumento era, de fato, obra do homem que revolucionara a arquitetura do século vinte. Logo calculei que sua edificação ali seria obra também do embaixador, governador, político, grande mineiro, imenso brasileiro José Aparecido de Oliveira, nascido em Conceição, católico fervoroso e amigo dileto do arquiteto. Não deu outra. Soube mais tarde que o arquiteto havia projetado o monumento por solicitação do amigo Aparecido. Só ele mesmo para, a exemplo de JK com a Pampulha e a catedral de Brasília, obter de Niemeyer, ateu convicto, um projeto para um altar católico. Quem sabe tenha sido mais um milagre. Certo, porém, é que os duzentos anos da igreja mereceram a homenagem.

Tinha saído da Pousada do Cipó e encarado a estrada de cascalho em velocidade máxima a fim de ainda pegar o jogo do Brasil contra a França, que valia classificação para a final da Copa do Mundo. Viajava comigo Zé Maria, um homem que, a exemplo de tantos outros do sertão mineiro, tem hora certa para fazer a boca de pito com um cafezinho de introdução ao primeiro cigarrinho e momento certo e intransferível para beber uma pinga. Todas essas ocasiões são sagradas e inadiáveis. Depois de passarmos pela placa alusiva à inauguração do Parque Florestal da Serra do Cipó, no cume de um dos montes, descemos fazendo um poeirão em busca de civilização e de uma tevê. 

Foi quando soou a hora de Zé Maria tomar a primeira do dia. Argumentei que, se parássemos, perderíamos a transmissão do jogo. “Mas eu não posso mais esperar!”, foi a resposta irritada. Acelerando ainda mais, repliquei que, em Conceição, poderíamos matar dois coelhos com uma só cajadada assistindo ao jogo e, ao mesmo tempo, enchendo a cara, inclusive para celebrar a presumível vitória do Brasil.

De repente, divisei algumas casinhas à margem da estrada, onde havia também um bar. Não deu para evitar que Zé Maria enxergasse, apesar de toda a poeira da estrada, um anúncio de cerveja. “É aqui! Para!”, berrou. “Zé!!!”, gritei. “O jogo! É a copa do mundo!” “Vou saltar!”, foi a resposta. E abriu a porta e quase pulou mesmo. Alcancei-o pela gola da camisa e o puxei para dentro, enquanto me esforçava para manter o controle do carro. Foi um sufoco. Tive de parar.

Depois de esperar que o mineiro radical cumprisse seu ritual, reiniciamos a jornada. Entramos em Conceição do Mato Dentro e logo descobrimos um boteco com televisão. Nessas horas dou vivas ao progresso. Aboletamo-nos numa das mesas e, de queixos para cima, pescoços quebrados, não desgrudávamos os olhos da tela do aparelho pendurado no mais alto da parede. Mas, da mesma forma como me dei por vencido quando vi que Zé Maria saltaria do carro de qualquer maneira para tomar a pinga rotineira, resignei-me a aceitar o pior ao ver Zico desperdiçar o histórico pênalti no jogo que tiraria o Brasil da Copa.

Fui então para trás de uma pilastra, de onde não podia acompanhar a partida, e tratei de consolar-me por antecipação lendo uma revista e pedindo uma caninha forte. Finalmente, quando o jogo acabou, Zé Maria, irado, foi buscar-me atrás da pilastra e acusou-me de ter sido o único responsável pela derrota já que havia quebrado a corrente da torcida: “Você não é um patriota!” Juro que até senti uma espécie de culpa. “E se eu continuasse torcendo?”, pensei comigo mesmo.

Nisso, surgiu um grande e vistoso automóvel Galaxie com um par de chifres de boi preso no capô, à moda do Sinhozinho Malta, personagem da novela Roque Santeiro, que fazia sucesso à época. Ao volante, um bebum fazia a maior algazarra buzinando sem parar. Levantei-me e fui até a porta do bar para apreciar melhor a cena. Por um instante imaginei tratar-se de algum francês perdido na montanha, que se arriscava a festejar a vitória de seu país e a desclassificação do Brasil. Nada disso. Ninguém teria tanta coragem e cara de pau. Tratava-se apenas de um protótipo do machão da novela berrando ensandecido, talvez querendo vingar-se com seus gritos da derrocada da Seleção. Nossos olhares se cruzaram. Eu, copo na mão, parado à frente do boteco, rodeado de gente em silêncio. Ele, dentro do veículo, esgoelando-se.

Aos poucos, e sem deixar de encarar-me, foi se acalmando e calando até que se deu o momento que não esqueço: enquanto se preparava para espancar novamente a buzina, a mão do Senhorzinho Malta, inesperadamente, perdeu o vigor e sua boca, antes escancarada a cada berro, foi murchando até que um choro incontrolável lhe deformou completamente o rosto.

Percebi que todos ao meu redor marejaram os olhos. Julguei-me ainda mais estranhamente culpado. Achei que todos os olhares me incriminavam. Se soubesse que assistir à partida daria nisso teria ficado lá na parada da serra enchendo a cara com Zé Maria e virando alguns copos para o santo. No caso, para o Bom Jesus do Matosinhos. Talvez assim a situação até se revertesse e tivéssemos trazido o Caneco. A menos que, esconjurei, venerado num altar erguido por um ateu, o Bom Jesus do Matosinhos houvesse perdido o poder de realizar milagres. Olhei para o alto do morro e observei no cume da colina o altar ímpio de Niemeyer espiando nossa dor.

Por via das dúvidas, joguei mais uma pro santo.

Música do dia

  • Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Francisco, Interior da Bahia, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro, cronista de ABCD REAL, publica no portal crônicas de seu livro “Teatro dos Esquecidos” e outras.
  • O livro pode ser adquirido pelo https://editorathoth.com.br/produto/teatro-dos-esquecidos/106
  • Esta crônica, por exemplo, “Mais uma pro santo”, está nas páginas 131, 132 e 133 dessa publicação imperdível.
  • Entre os maiores sucessos de Guarabyra como compositor e cantor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra Vez na Estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá), “Espanhola” (com Fávio Venturini), “Dona” e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas publicadas na grande imprensa, entre elas, em conclusão, o Diário Popular.

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