Infância no sertão

In ABCD, Artigo On
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Por Guttemberg Guarabyra*

Serapião, sozinho, era um espetáculo completo. Beirando os oitenta anos, o velho saltava bancos de areia, escondia-se atrás de muros usando sua inseparável bengala. E com ela fazendo a vez de um rifle cuspia fogo, ora na direção dos cangaceiros ora na dos macacos da volante policial. Mais de vinte crianças, sentadas no chão, aplaudiam, gritavam entusiasmadas. Torciam invariavelmente pelos cangaceiros, pois o contador de histórias sempre arranjava um jeito de enaltecer o bando liderado por Lampião. E havia também a imitação de Volta Seca, o músico da quadrilha. Aquele que punha todos para dançar ao som da sanfona, sempre que podiam descansar após ludibriar os perseguidores.

Meu pai, da janela do velho casarão no sertão baiano de Xique-Xique, acompanhava as estripulias de Serapião e se divertia pagando o espetáculo. Isso mesmo. Serapião recebia por partes. E elas eram duas. Dois atos. Pela primeira, que ia até a reunião do grupo naquele que seria seu último acampamento, em Angicos, cobrava uma moeda de um cruzeiro, que meu pai, da janela, jogava para ele. Dali para diante, até a morte de Lampião e Maria Bonita, dois cruzeiros, que naquela época, no sertão, ainda chamávamos de “mil-réis”.

Lembraria disso muitos anos mais tarde, quando, estando nas Alagoas, visitei Penedo. Essa cidade, às margens do São Francisco, apresenta arquitetura colonial, destacando-se por seus casarões e igrejas, num cenário que estamos acostumados a encontrar na paisagem montanhosa e verdejante do estado de Minas e não plantado na aridez do agreste nordestino. Da janela do hotel, no alto de uma colina, divisava barcos à vela singrando o rio levando turistas a passeio. Numa tarde aboletei-me em um deles e fui visitar a outra margem, já no estado de Sergipe, onde havia uma olaria que produzia belas peças de cerâmica. O barqueiro foi me contando que antigamente transportava em seu barco uma enorme quantidade, rio acima, daqueles artefatos produzidos ali, até a divisa da Bahia, próximo à cachoeira de Paulo Afonso, numa viagem que costumava durar de quatro a cinco dias. Perguntei-lhe se ainda teria coragem de topar uma empreitada daquelas.

Disse-me que, apesar de seus setenta e três anos, ainda tinha disposição para enfrentá-la. Indaguei o quanto cobraria. Fitou-me de olhos esbugalhados, fechamos negócio.

Instruído por ele, tratei de reunir as provisões: arroz, farinha e carne-seca. Acrescentei água mineral. Partimos no dia seguinte, às seis horas de uma magnífica manhã de sol. Velas abertas, a embarcação de doze metros embicou para os lados da Bahia, o casco batendo na água, rasgando forte a correnteza contrária.

Foram cinco dias inesquecíveis rachando a pele sob o sol e o vento nordestinos. Tardes quietíssimas, conversas, lembranças; como é bom navegar no silêncio de um barco sem motor! Eu, que tinha nascido no médio São Francisco, muito acima daquele ponto, via surgir à minha frente as cidades que eram apenas nomes da minha infância: Propriá, Pão de Açúcar, Piranhas… Jamais esquecerei o momento em que passamos sob a grande ponte de Propriá. Retive para sempre na memória a visão de sua balaustrada, o vigamento inferior, os robustos pilares resistindo ao rio.

Certa manhã, seu José Francisco, o barqueiro, calou-se subitamente e fixou os olhos num ponto distante da paisagem. Era apenas uma pequena casa branca, perdida na sertania. Para minha surpresa, marejou os olhos, emocionado. O motivo: um dia, na juventude, navegava por ali com uma carga de cerâmica, quando ameaçou desabar um temporal. Por via das dúvidas, ancorou numa margem. Terminou dormindo.

A tempestade acabou não acontecendo. Quando acordou, estava ali na beira do rio, à espera de que despertasse, nada menos que parte do bando de Lampião. Estremeceu; mas foram logo lhe dizendo que nada temesse. E o obrigaram a trazê-los até aquela casa branca.

Deixaram-no ancorado à frente dela, justo por onde navegávamos naquele instante, com ordem para que aguardasse. Logo chegou outro veleiro e seu piloto, igualmente retido à força, com o restante do bando. Os dois barqueiros sequestrados assistiram do porto quando eles despacharam diversos cavaleiros que retornariam mais tarde cada um com uma mulher na garupa. À noite, acenderam uma imensa fogueira e o sanfoneiro do bando animou um tremendo arrasta-pé que durou até o amanhecer.

No dia seguinte, teve como missão levá-los de volta ao mesmo ponto da véspera, onde havia permanecido uma pessoa do bando cuidando dos cavalos. Pagaram-lhe regiamente pelo transporte, e partiram. Naquele instante a infância no sertão me veio à cabeça com Serapião e suas histórias, e mais tarde acabaria compondo uma música em que relatava o momento em que ficamos observando – aí eu também já com os olhos rasos d’água – a casinha branca desaparecendo na amplidão.

Música do dia

  • Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Francisco, Interior da Bahia, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro, cronista de ABCD REAL, publica no portal crônicas de seu livro “Teatro dos Esquecidos” e outras.
  • O livro pode ser adquirido pelo https://editorathoth.com.br/produto/teatro-dos-esquecidos/106
  • Esta crônica, por exemplo, “Infância no sertão”, está nas páginas 119 e 120 e 121 dessa publicação imperdível.
  • Entre os maiores sucessos de Guarabyra como compositor e cantor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra Vez na Estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá), “Espanhola” (com Fávio Venturini), “Dona” e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas publicadas na grande imprensa, entre elas, em conclusão, o Diário Popular.

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