- Guttemberg Guarabyra
Menino, tocava na banda do colégio que, perfilada, aguardava a chegada do presidente João Goulart no aeroporto da cidade pequena.
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Certa vez escrevi uma crônica narrando a quantidade de vezes em que estive nos lugares certos nas horas erradas, horas erradas nos lugares certos, lugares certos nas horas certas e inevitáveis lugares errados nas horas de igual teor.
Quem não?
Mas de tanto narrar peripécias um leitor essa semana me questionou se eram de fato reais as minhas reminiscências.
Das que já narrei nesse pequeno período no ABCD Real, fiquei pensando quantas beiravam o inacreditável, de tal forma que o leitor tivesse esse momento de sentir uma pulga atrás da orelha e não saber se o inseto estaria ou não no lugar certo e na hora adequada.
Recordei aquela em que me encontro na direção do Festival Internacional no momento em que a ditadura necessitava de um ato de resistência.
Esta, posso dizer que se tratava de estar no lugar certo num momento errado do país.
O que já representa uma nova vertente de sincronicidade entre vida e destino.
Ter assistido a primeira apresentação de Maria Bethânia no cenário musical, foi evidente lugar certo na hora certeira.
Na velha crônica escrita no passado, comento também o fato de ter assistido quando, no sertão, caminhando tranquilamente numa manhã tranquila, numa rua tranquila de uma cidade tranquila, um homem intranquilo quase me atropela ao passar em disparada rumo a um companheiro que, do outro lado da rua, tentava conter dois cavalos intranquilos.
No momento, de nada desconfiei. Só mais tarde a notícia correu a cidade. O homem acabara de assassinar o amante da esposa e quase me atropelado ao passar voando em direção ao cúmplice que o aguardava com os animais preparados para a fuga.
Menino, tocava na banda do colégio que, perfilada, aguardava a chegada do presidente João Goulart no aeroporto da cidade pequena.
O professor que nos liderava, impaciente que os cumprimentos à autoridade estavam retardando nossa performance, que dependia de sua passagem pelo caminho à nossa frente em direção ao carro que o transportaria em cortejo, pediu que aguardássemos enquanto verificava o que ocorria.
Antes, disparou o lembrete: Só ataquem à minha ordem.
Bastou se afastar para que o presidente apontasse e, observando a banda perfilada, estancasse para permitir que iniciássemos a saudação.
Estiquei o pescoço à procura do professor e da imprescindível ordem de atacar.
Sem encontrá-lo voltei as vistas aflitas e indagativas para o presidente, que firmemente ordenou: Toca isso aí, moço.
Cumprindo ordens expressas da presidência, liderei a contagem e disparei o tambor.
Eu estava no lugar certo no momento certo, porém já não posso dizer o mesmo do professor que se ausentou.
Ontem, navegando à toa na Internet dei de cara com João Marcelo Bôscoli falando sobre Frida Boccara.
Quase caí de costas.
Frida, a grande cantora marroquina que viveu na França, conheci quando dirigi o Festival Internacional da Canção, na TV Globo. Trinta países concorriam. Frida defendeu a França interpretando magnificamente uma impressionantemente linda canção.
Quando fui convidado a dirigir o Festival Internacional da Televisa, no México (outra reminiscência para entrar na lista), a convidamos para novamente representar o país.
Fizemos uma instantânea amizade.
Minha amiga se foi cedo, mas deixou uma obra encantadora.
Nesses tantos anos, ainda que pesquisasse bastante, não encontrava mais nenhuma referência a ela, o que me deixava tremendamente frustrado.
Semana retrasada, como às vezes faço, reproduzi a playlist com sua obra, que produzi para matar as saudades.
Se naquele momento em que a escutava houvesse aberto o computador e tivesse sido surpreendido por João Marcelo mostrando que também reconhece a grandeza de Frida, teria detectado imediatamente e sem a menor dúvida mais um momento certo no lugar certo.
Mas o fato de a coincidência ter acontecido apenas duas semanas depois, remete a uma das facetas das sincronicidades da vida mais comumente citadas.
Antes tarde do que nunca.
Assim que ouvi João, corri para resgatar a velha foto em que, no México, desta feita num momento certo e sagrado, eu, embasbacado, dizia sem precisar dizer como amava Frida Boccara.
Música do dia
- Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Franscico, Interior da Bahia, cronista de ABCD REAL, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro. Entre seus maiores sucessos como compositor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra vez na estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá) , “Espanhola” (com Flávio Venturini), Dona e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas.