Fã-clube

In ABCD, Artigo On
Chico, Guarabyra e Milton Nascimento, no Festival de 1967

Por Guttemberg Guarabyra*

Naquele dia de 2007, acordei e notei que havia um recado à espera na secretária eletrônica. Um amigo avisava que minha vitória com Margarida no Festival Internacional da Canção completava 40 anos. Quarenta anos! O tempo passa. Quatro décadas atrás, eu, aos dezenove anos, tinha despertado certa manhã e ficara ouvindo rádio em meu quarto, no legendário Solar da Fossa, no Rio, moradia de dez entre dez artistas da época. Do MPB-4 a Tim Maia. De Maria Gladys a Gal Costa, de Caetano Veloso ao ator Antônio Pedro, de Guilherme Araújo a Paulo Coelho. E, ainda, Zé Rodrix e toda a turma que formaria, bem mais tarde, o conjunto Boca Livre e que participaria também do trio Sá, Rodrix & Guarabyra, além de vários iniciantes dos quais não lembro os nomes no momento, mas que podem ser revisitados no livro Solar da Fossa, de Toninho Vaz.

Jogados ao chão, três dos grandes jornais do Rio estampavam minha foto na primeira página. A cidade, eletrizada, preparava-se para assistir logo mais à grande final em que eu despontava como franco favorito, concorrendo com Milton Nascimento, Chico Buarque, Vinicius de Moraes, Pixinguinha, Edu Lobo e outros monstros sagrados. Aliás, Milton está fora dessa relação de celebridades, pois estreava juntamente comigo, cotado, ele também, entre os favoritos.

Minha impressão era de que aquilo tudo não estava acontecendo. Eu só havia inscrito minhas músicas no festival devido à insistência dos amigos de minha turma de bar, que condicionaram a inscrição a um empréstimo para a compra de uma passagem de volta para o sertão, de onde nunca deveria ter saído, segundo minhas próprias palavras. Estava farto de tentar a vida no Rio de Janeiro. Fiz o registro e, feliz, ganhei a passagem e embarquei para a longa viagem de volta a Bom Jesus da Lapa. Ao chegar, prometi a mim mesmo que jamais me aventuraria novamente numa capital comendo o pão que o diabo amassou, sem ter tido chance de emplacar.

Mas ocorreu que duas das três canções que inscrevi foram classificadas, e a notícia se espalhou pelo Brasil chegando até mesmo a Bom Jesus da Lapa, mesmo num tempo sem internet e em que jornais e revistas demoravam dias para chegar até onde me escondia. Havia, porém, o rádio, e a cidade acabou sabendo. A badalação foi tão grande que até meu pai, pastor batista, antes feliz defensor da minha desistência da vida artística, começou a sugerir discretamente que deveria regressar ao Rio e concorrer ao festival. Acabei voltando.

E, assim, depois de ter enfrentado a primeira eliminatória num Maracanãzinho lotado por 40 mil pessoas, e de ter me tornado conhecido da noite para o dia, lá estava eu, olhando para o teto do quarto no velho Solar curtindo uma das coisas que mais apreciava: ouvir rádio. Tudo parecia tranquilo. No entanto, tinha um problemão.

Havia amanhecido completamente rouco. Lembrava de como os calouros se portavam no histórico Programa Ary Barroso, na Rádio Nacional, quando se apresentavam acometidos pela rouquidão: “Pedindo desculpas por encontrar-me afônico, interpretarei da autoria de…”. Quem sabe a solução não fosse me apresentar diante do público de 40 mil pessoas, além dos milhares de telespectadores e ouvintes das emissoras de rádio Brasil afora, alertando a plateia, da mesma forma, sobre o lastimável estado de minha garganta. Só não aconteceu porque, à tarde, antes de seguir para a apresentação, compareci à consulta concedida de forma urgente com Pedro Bloch, o dramaturgo famoso que era também abnegado e competente fonoaudiólogo. Inacreditável como me livrou milagrosamente da rouquidão.

Mas tive que permanecer em tratamento no consultório até quase a hora do início do festival. Quando fui liberado mal tive tempo de voltar ao Solar para tomar um rápido banho, vestir o smoking adornado com gravata borboleta, completando o traje obrigatório, e partir para o tudo ou nada da final.

Desesperado com o atraso, tentava encontrar um táxi. Ao ver um deles parando um quarteirão abaixo de onde estava, disparei para lá e o invadi, gritando: “Para o Maracanãzinho, urgente, por favor!”. O motorista, português, olhou-me de cima a baixo e exclamou: “Tu és o rapaz que está a concorrer no festival!”. Confirmei aliviado, pois, se estava acompanhando o concurso, sabia do apuro em que me encontrava.

Graças a Deus o motorista não se fez de rogado e saiu desabalado em direção ao estádio. Só que, inesperadamente, começou a percorrer um caminho estranho. Imaginei que deveria ser alguma manobra para escapar aos congestionamentos da hora do rush. Mas não era nada disso, e apenas percebi a artimanha quando entrou por uma ruazinha, em Vila Isabel, já bem próximo ao estádio, e estacionou diante de uma casa. Diante
da casa dele! Saltou berrando como louco para que a mulher e as filhas viessem ver quem transportava no táxi. Eu, àquela altura, perplexo, no banco de trás, quedei-me paralisado enquanto três figuras, duas filhas e a esposa, despontaram no muro e, atendendo ao pai, aproximaram-se correndo em busca de autógrafos.

Primeiro pensei em aplicar uma descompostura no lusitano bigodudo, mas a família tinha excelente astral, o que fez com que meu bom humor sequer fosse abalado. No fim, apesar de ter chegado em cima da hora da apresentação, ganhei o festival com muito alto astral e cantando com uma voz limpa, sem sinais de rouquidão. As fotos publicadas nos jornais do dia seguinte, algumas comigo até hoje, são prova de que me sentia muito bem naquela data querida cujo aniversário o recado na secretária eletrônica não deixou passar em branco.

Só lamento que, devido ao descaso com que a grande mídia passou a tratar os festivais, os jovens compositores, que bem poderiam ser revelados por eles hoje, não possam mais contar uma história como esta no futuro.

E aproveito a semana em que Chico Buarque, também revelado em festivais e companheiro dessa aventura, chega aos 80, para agradecer por todos os anos de boa música e de exemplo de caráter e dignidade.

Vídeo do dia

  • Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Francisco, Interior da Bahia, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro, cronista de ABCD REAL, publica, às segundas e sextas-feiras crônicas de seu livro “Teatro dos Esquecidos” e outras.
  • O livro pode ser adquirido pelo https://editorathoth.com.br/produto/teatro-dos-esquecidos/106
  • Esta crônica, por exemplo, “Fã-clube” , está nas páginas 105, 106 e 107 dessa publicação imperdível, do mesmo nome.
  • Entre os maiores sucessos de Guarabyra como compositor e cantor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra Vez na Estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá), “Espanhola” (com Fávio Venturini), “Dona” e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas publicadas na grande imprensa, entre elas, em conclusão, o Diário Popular.

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