Guttemberg Guarabyra
Sempre achou abusivo que, ao concluir o pedido, o site sugerisse que depositasse uma quantia a mais pelo envio, para recompensar o entregador.
—
Que grata surpresa. Aquele pequeno restaurante, que tanto lhe matara a fome e jamais pôde frequentar novamente por ter ido morar num bairro distante, estava no I Food.
Inacreditável.
Esquadrinhou o cardápio até achar o desejado prato. Era tarde da noite e o estabelecimento estava fechado, mas para amanhã o pedido já estava aprazado.
No dia seguinte chegou do trabalho e foi direto para o computador. Abriu o site e fez o pedido. Entrega em 54 minutos.
Era o tempo de tomar um banho, fazer um cafezinho e nada de petiscos. A matança da fome estava encomendada e em breve estaria na garupa do motoboy, viajando direto aos seus dentes, ávidos por estraçalhar a lembrança dos bons dias.
A entrega era rastreável. O motoboy, Ernesto, já estava no restaurante aguardando a preparação.
Sempre achou abusivo que, ao concluir o pedido, o site sugerisse que depositasse uma quantia a mais pelo envio, para recompensar o entregador.
Mas desta vez seria diferente. Já via com outros olhos a recompensa. Claro que ia acrescentar uma boa gorjeta pro Ernesto.
Lembrou de Adoniran. ‘Ernesto me convidou prum samba, ele mora no Brás.’
Graças a Deus a iguaria não morava tão longe e faltavam apenas 15 minutos para chegar.
Fazia um frio de rachar, foi buscar um agasalho. Verificou se estava com a chave da porta. Melhor deixar a mesa arrumada.
Lembrou daquele prato raro, de cerâmica decorada, que usara pouquíssimo e havia comprado num antiquário.
No início pensou em usá-lo como peça de decoração. Mas era de confecção tão preciosa e delicada, que teve medo de estragá-lo ao afixar algum suporte que permitisse pendurá-lo na parede.
Daí o reservou apenas para ocasiões especiais.
E o havia posto à mesa apenas em duas ocasiões. A primeira quando pediu aquele caríssimo filé Wellington. Custou os olhos da cara, mas valeu a pena.
A segunda, quando ele próprio preparou um autêntico bacalhau Gadus Morhua, mas errou a receita. O prato não merecera o prato.
Dois minutos.
Melhor ir descendo para a portaria. Ernesto está praticamente na esquina.
O restaurante não ofereceu a mesma porção generosa dos velhos tempos, mas a apresentação estava no capricho.
Logo à primeira garfada sentiu o gosto forte do pimentão. Não lenbrava que o ingrediente constava da antiga receita. O sabor forte contamina tudo. Mas vamos lá.
Três horas mais tarde ainda conversava com o legume, fruto, sabe-se lá em que categoria se enquadra o maldito pimentão.
Depois de muito matutar, não sabia concluir se a iguaria sempre fora ruim ou se na época de jovem descapitalizado, qualquer mata-fome valia um Wellington.
De toda forma, nenhuma gorjeta para o Ernesto. Não tinha culpa no cartório, mas vá trazer lembrança ruim assim adiante.
Música do dia
- Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Franscico, Interior da Bahia, cronista de ABCD REAL, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro. Entre seus maiores sucessos como compositor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra vez na estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá) , “Espanhola” (com Flávio Venturini), Dona e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas.
