Por Marli Gonçalves*
Estantes, instantes. Você aí tem uma estante ou os seus livros ficam espalhados formando novos móveis, caminhos? É apegado a eles, ao menos alguns deles? Olha só como podem contar uma vida.
Há muito não pegava um livro pela manhã, que me acompanhasse carregado em meio ao cotidiano caótico e cheio de tarefas, não me desgrudasse dele até acabar de ler a última página, à noite, na cama, mas impedida de dormir enquanto isso não acontecesse. Falo de um livro que nos ganha primeiro pela singeleza e tranquilidade de sua autora. Que descreve uma vida inteira por intermédio de livros amados, outros nem tanto, procurados na sala de uma casa, alguns até ainda escondidos – devem estar em algum lugar por aí – ou descritos nas lembranças que trazem a uma jornalista pioneira, Teresa Montero Otondo, agora aos seus 81 anos. A gentileza em pessoa, com quem eu adoraria ter convivido muito mais do que apenas em nossos encontros recentes. Anote: Rascunhos de Vida – entre livros e escritos, Editora Coerência.
Teresa foi a primeira mulher a, em 1966, ingressar e trabalhar já no lançamento do Jornal da Tarde, o magnífico vespertino ligado ao Estadão que fez história e chegou às bancas no dia 4 de janeiro de 1966. Imagino bem o que passou, o quanto deve ter sido difícil conviver com o universo masculino, machismo intragável que ainda hoje – nem tentem negar – está presente nas redações. Cheguei ao JT 15 anos depois e ainda conheci essa batalha. Teresa sempre foi uma lenda na redação, descrita como bela, além de excelente e culta profissional. Diziam que à época arrasou corações, assim como a hoje Monja Coen, Claudia Dias Baptista, também jornalista, que passou pelo JT, acabou se afastando por problemas pessoais, indo morar em Londres, se tornando uma das vozes mais respeitadas do budismo.
Conto tudo isso porque a obra de Teresa Otondo me levou longe, ou melhor, perto, bem aqui, à minha própria estante e que já nem sei mais quantos livros carrega em suas prateleiras, centenas, além, claro, dos espalhados, empilhados, ou atrás de suas portas. Pensei no que escreveria ao tirá-los agora um a um de seu lugar, como fez Teresa, e ela própria lembra dos muitos que doou quando deixou a cidade grande e foi morar em Bragança Paulista, perto do ar fresco, de janelas com a luz do Sol e visão de campos verdes, recordando muitas vezes sua infância.
No meu caso, lá se vão 12 anos desde a última vez que organizei os meus livros, vinda de mais de 30 anos morando sozinha, precisei mudar de novo para a casa da família, acompanhar os últimos anos de meu pai. Lembro de tê-los tirado de caixas, espalhado na sala, sobre a imensa mesa da sala de jantar, enquanto os espanava e esperava secar a pintura de branco da velha e forte (ainda bem porque suportam o peso) estrutura escura de madeira jacarandá do móvel, onde já muitos viviam guardados, especialmente coleções. Aquelas bonitas, encadernadas, Enciclopédia Barsa, José de Alencar, Machado de Assis, Monteiro Lobato. Decameron (!), biografias em “Grandes Coleções”. Todas misturadas com livros de estudo meus e do meu irmão, entre outras que deixamos guardadas por aqui quando saímos de casa. Primeiro ele; depois, eu, cada um em um canto. Cavei espaços para os que trazia comigo nesse retorno.
Sobre a mesa, separando um a um, também vi a minha vida passar, a infância, os interesses, os temas. Pensei mais ou menos assim, por áreas: Biografias, Mulher/feminismo, Comunicação, Dicionários (até de japonês-português), Poesia, Clássicos, Literatura Geral, Arte, Fotografia, Pintura, Sexo (hummm), Esoterismo, Religião, Bíblia, HQs que sempre amei, o cantinho de amigos autores, valiosas dedicatórias, divisões imaginadas. Tudo muito arrumado, fácil de achar. Outros foram chegando, agora postos sobre os que já estavam alinhados, muitos deles na fila, à espera de atenção, tempo e leitura um dia qualquer.
Hoje, passada mais de década, já não garanto encontrar fácil os que procuro, como que apalpando cegamente onde os imagino ter posto. As frentes agora tomadas por enfeites, que são os que mais movimentam no dia a dia a estante que Teresa me impulsiona a rever. E às pilhas de mais outros que já se aglomeram em outros locais, enfeitando com belas capas e formas. Fora os desprezados que viraram suportes fixos da tela do computador – esse mundo digital que tanto tempo hoje ocupa de nossas leituras, nos afastando dos livros – para situá-la à altura dos olhos.
– MARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano, Coleção Cotidiano, Editora Contexto. (Na Editora e na Amazon). Vive em São Paulo, Capital.
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