Ditadura, xadrez e o piano

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  • Guttemberg Guarabyra

Houve um tempo em que fui empolgado pelo jogo de xadrez. Comprei livros, estudei técnicas, biografias de campeões, Capablanca era meu predileto, e um dia pude ver um campeão de perto. Mequinho entrou num bar que eu frequentava, no Rio. Tive vontade de me apresentar, puxar um papo, mas preferi não incomodar nosso campeão. Lamentei profundamente quando a saúde lhe barrou a caminhada que tinha tudo para ser ainda mais brilhante. Zé Carlos, pianista e enxadrista, era meu adversário mais frequente. No pequeno apartamento em que residia, em Copacabana, varávamos a noite nos enfrentando no tabuleiro. Quase sempre nos encontrávamos antes no Sachinha’s, bar boêmio, no Leme, em que nos refugiávamos com um numeroso grupo de artistas e intelectuais para disparar maldições contra a ditadura militar, e depois partíamos para o confronto no apartamento da Barata Ribeiro. Uma noite, no Sachinha’s, que era de frente pro mar, surgiu um banhista retardatário, desses que saem de casa para ganhar uma cor ao sol mas as escalas nos balcões e o bom uísque jamais permitem que sequer cheguem à areia. Nove da noite, de calção, camiseta jogada no ombro, já tropicando nas sandálias, entrou, espalhafatoso, falando alto, e pediu um chope. ‘Na pressão!’. Jamais o havíamos visto por ali. Os amigos, divididos em algumas mesas, interromperam o papo para apreciar o show à parte, mas logo voltaram a conversar. O sujeito, porém, assim que deu o primeiro gole, começou a falar alto proferindo verdadeiros discursos a favor da ditadura. Eu e Zé Carlos nos entreolhamos como a dizer, ‘o gajo veio no lugar errado’. A certa altura, identificou-se: “Eu, como assessor do professor Alfredo Buzaid…”. Ora, vejam. Dava-nos a honra da visita um auxiliar do Ministro da Justiça do ditador Garrastazu Médici. Como o estado etílico era dos mais altos, a ponto de a língua enrolada impedir a compreensão de alguns pontos das falas, não enxergamos nenhuma ameaça à nossa trincheira, e voltamos à rotina das conversas. Voltamos em termos. Menos eu e Zé Carlos, que continuávamos observando o assessor do Professor. Lá pelas tantas, Zé puxou uma nota de cinquenta do bolso e sugeriu que eu a levasse até o assessor e a oferecesse como pagamento por uma digamos, sessão de amor. ‘Diga que estou pagando cinquenta…”. Aproximei-me do banhista ilustre com o dinheiro e transmiti-lhe o recado. Não sabia que dava para expor os globos oculares àquele ponto em que o homem os escancarou. Ficou sem fala. Engasgou. Como não obtive resposta, voltei com o dinheiro para devolvê-lo. Nisso, Zé Carlos, prudentemente, já estava na calçada do bar, apenas entreolhando a cena. Em vez de pegar o dinheiro de volta, acrescentou à oferta mais uma nota de cinquenta. ‘Diga que ofereço cem’. Quando refiz a oferta, o banhista súbito adquiriu toda a cor rubra que deveria ter adquirido caso tivesse mesmo conseguido tomar o banho de sol que o álcool havia cancelado. Olhou em direção à porta, e viu quando Zé Carlos, ajeitando os óculos, dirigiu-lhe um sorriso acompanhado de um adeusinho. Foi o bastante para que alcançasse um vidro de ketchup no balcão e o atirasse violentamente em direção ao autor da oferta. O vidro espatifou-se na parede ao lado da porta espalhando sangue de tomate e estilhaços por todo canto. Os amigos, até aquele momento alheios ao que acontecia, de pronto viram naquele inimigo, que antes parecia inofensivo, um perigo para as nossas trincheiras e contra-atacaram violentamente. Eu e Zé Carlos acudimos imediatamente. Mas quando finalmente convencemos a todos que não era caso que exigisse agressão e conseguimos afastar os mais exaltados, o assessor, banhista, defensor da ditadura, já exibia um olho roxo e uma bochecha bastante inchada. Diante dos nossos pedidos (um tanto cínicos) de desculpas, passou a se gabar de ter sido homem bastante para reagir, que não tinha medo de ninguém, e, com a cara esfolada, recomeçou os discursos. Durante um deles proferiu a frase memorável, que até hoje imito perfeitamente, incluindo o sotaque estranho e a língua enrolada: “…Porque se eu tivesse um piánô, eu teria jogado um ‘piánô’. Mas como eu tinha apenas uma garrafa de kéeetchup…”. Naquela noite não conseguimos nos concentrar nos lances mais complicados do tabuleiro. A cada peça que eu perdia, declamava: ‘Porque se eu tivesse um piano…’ E não parávamos mais de rir.

Música do dia:

 

  • Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Franscico, Interior da Bahia, cronista de ABCD REAL, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro. Entre seus maiores sucessos como compositor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra vez na estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá) , “Espanhola” (com Flávio Venturini), Dona e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas.

 

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