Por Guttemberg Guarabyra*
O louco sentou-se à beira da calçada, arranjou duas pedrinhas e pôs-se a brincar com elas, atirando-as de encontro ao meio-fio, para recuperá-las em seguida. Logo um casal de pombos, atraído pelo barulho, veio rondá-lo com cautela. Não gostava da companhia deles, visto que pareciam andar com os braços para trás, como a vigiá-lo. Ameaçou atirar uma das pedras em direção a eles, que bateram asas num voo curto, pousando não muito longe.
Do novo ponto de observação, puseram novamente os braços às costas e outra vez passaram a investigar o que o homem fazia. Resolvido a acabar com o enxerimento que o perturbava, o louco se levantou e lançou-se a correr atrás dos pombos. Quando levantaram voo, estendeu também os braços, movimentando-os como se fossem duas asas, desejando também voar e fazer-lhes companhia perseguindo-os por entre os edifícios, árvores e carros.
Foram pousar na varanda de um oitavo andar, onde uma dona de casa regava distraidamente um pequeno jardim. O marido lia o jornal na sala e flagrou o momento em que as aves pousaram silenciosamente na mureta da varanda. Percebendo que a mulher não havia notado a presença da dupla, bateu de leve no vidro que separava a sala da varanda, tentando alertá-la, visto que ela adorava os pássaros visitantes do jardim. Sem imaginar do que se tratava, ao ouvir as pancadas no vidro a mulher voltou-se bruscamente, provocando novo voo das aves, desta vez para bem longe.
“Estavam bem atrás de você”, disse ele. “Que pena”, lamentou-se ela, acrescentando que já havia surpreendido alguns pombos a admirá-la de perto, mas não era muito chegada a pombos. Gostaria mesmo era de ver bem de pertinho, “…aquele passarinho de barriguinha amarela, sabe qual é?”. Não, ele não sabia. Não era muito ligado nisso. O jornal e as notícias sempre foram mais importantes. O acontecimento de hoje fora apenas uma exceção. Se não houvesse feito uma pausa na leitura naquele momento, certamente não teria nem sequer notado a chegada dos visitantes.
Deixou o jornal de lado, em cima da mesa. Calçou os chinelos, ajeitou o roupão e foi em direção à cozinha. Pediu a Mara que lhe fizesse um café. “Pros dois?”, Mara quis saber. “Deixa ver.” Enquanto o patrão voltava à varanda para perguntar à jardineira amante dos pássaros se queria fazer-lhe companhia num cafezinho, Mara fechava a porta da cozinha.
Jamais a deixava aberta. Gostava de sentir-se isolada em seu pequeno mundo de serviços. Trabalhava ali há tanto tempo que considerava o lugar como sua própria casa. Às vezes até imaginava que o filho estava ali e que a qualquer momento poderia vê-lo e falar com ele. Considerava-o um tanto problemático. Porém, nada que fosse incomum aos seus dezessete anos. Apreciava vestir-se à moda dos adolescentes americanos. Boné vistoso, bermudas muito largas, meias grossas e coloridas, tênis impecáveis, Marcelo trazia ainda os fones sempre aos ouvidos, transmitindo-lhe dia e noite o som inseparável.
Mara costumava justificar os modos extravagantes do filho dizendo que ele apenas atravessava a “idade da aborrescência”. Marcelo detestava o trocadilho. Como proteção contra as críticas maternas, aumentava ainda mais o volume dos fones e, quando tinha algum dinheiro sobrando e nenhum compromisso na tarde, pegava um ônibus e se metia nas ruas do centro andando até cansar, quando geralmente parava num boteco para tomar um mate gelado. Se não tivesse, um guaraná caía igualmente bem.
Cogitava, sem que a mãe desconfiasse disso, deixar a escola e arranjar um emprego. Sabia que ela não aprovaria a ideia. Mara inclusive gastava uma parte substancial do ordenado em tênis, plano de celular e tudo o mais que o satisfizesse, justamente para que jamais pensasse em largar os estudos. Porém, tantas canções invadiam seu cérebro, aos berros, cantando Londres, Nova York, que lhe era impossível não pensar em voar.
Foi só falar em voo e os pombos entraram novamente em ação acercando-se do louco mais uma vez. No oitavo andar, a porta da cozinha se abre: “Mara, é café pra dois!”. No asfalto, os pombos, ainda mais desconfiados, esticaram os pescoços assim que o louco passou a imitar-lhes os arrulhos, tentando, quem sabe, estabelecer com eles uma conversação além dos limites das linguagens.
Por fim, dando asas à imaginação, homens, pombos e sonhos seguiram tagalerando pelo espaço enquanto a tarde voava em busca da noite num canto de vida qualquer, num pedaço qualquer de rua de uma cidade qualquer.
Música do dia
- Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Francisco, Interior da Bahia, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro, cronista de ABCD REAL, publica, às segundas e sextas-feiras crônicas de seu livro “Teatro dos Esquecidos” e outras.
- O livro pode ser adquirido pelo https://editorathoth.com.br/produto/teatro-dos-esquecidos/106
- Esta crônica, por exemplo, “Como os pássaros” , está nas páginas 85, 86 e 87 dessa publicação imperdível.
- Entre os maiores sucessos de Guarabyra como compositor e cantor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra Vez na Estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá), “Espanhola” (com Fávio Venturini), “Dona” e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas publicadas na grande imprensa, entre elas, em conclusão, o Diário Popular.