CAIXINHAS DE SURPRESA

In ABCD, Artigo On

Guttemberg Guarabyra

— Seu quadro é de avoamento leve. Dois Netflix à noite podem resolver.

Hoje estou voltando à vida.

Não é a primeira vez (na vida) que, alienado de tudo, e sem perceber por onde ando, minha alma me põe a dar um giro por algum espaço inidentificável.

Pode ser pela manhã com retorno à tarde.

Ou começamos o voo aleatório numa tarde e voltamos após o café da manhã do dia seguinte.

Aconteceu mais ou menos isso ontem. Mas já voltei.

A ciência hoje explica tudo, e essa síndrome humana, não duvido nada, já foi ou está prestes a ser identificada.

Diagnosticá-la no âmbito do termo avoado quiçá (sem trocadilho) caia bem.

— Seu quadro é de avoamento leve. Dois Netflix à noite podem resolver.

Dependendo do filme assistido, talvez a alma até resolva aterrissar antes.

Importante, porém, é que a realidade da vida se imponha a tempo de a alma não ir muito longe, e a pessoa acabe caindo em outro tempo e espaço. E a vida, inesperadamente, vire esquecimento sem volta.

O ser humano, e não só o futebol, é uma caixinha de surpresas.

Faz tempo li sobre o drama vivido pelos pais de uma criança que, ao amar demasiadamente o cãozinho da família, embarcou na viagem de ser idem um cão.

Fez das pernas patas traseiras, dos braços, naturalmente, as dianteiras e passou a andar sobre quatro patas, a rosnar quando aborrecida, a latir quando tinha fome, e a chorar desbragadamente se não a deixassem dormir ao lado do companheiro de raça.

Típico exemplo de alma que foi longe demais.

A distância exagerada desliga alguma transmissão vital, quebra alguma coisa, e o resultado pode ser desastroso.

Nada porém comparável ao que assisti ainda no tempo da televisão preto e branco, antes do surgimento da gravação em vídeo, em que todos os programas eram transmitidos ao vivo.

Neyde Aparecida foi a protagonista.

Nos primórdios da televisão brasileira, houve, tal qual aconteceu no mundo inteiro ao progredir do rádio para a da telinha em casa, uma migração natural de ídolos.

Os maiores cantores e cantoras do rádio tornaram-se automaticamente astros no novo veículo de comunicação. O mesmo ocorreu com os atores. O que ninguém esperava foi o surgimento de uma nova categoria de ídolo.

A garota-propaganda.

A admiração por elas formou numerosos fãs clubes. A torcida pelas prediletas durante os intervalos comerciais era fervorosa.

Neyde talvez tenha sido a primeira Namoradinha do Brasil.

Mas quase botou a perder o prestígio quando, durante um comercial, sem destravar o cabo da enceradeira elétrica, que o mantinha na vertical, enfiou o fio na tomada e desgraçadamente o interruptor estava na posição de ligado.

O aparelho enlouqueceu e, aos rodopios, feito um rodamoinho metálico, dançava violentamente pelo estúdio, ameaçando prateleiras e outros produtos dispostos no cenário.

Foi um deus-nos-acuda.

Ao conseguir domar, com a ajuda do pessoal da produção, o artefato maluco, ainda conseguiu sorrir, fazer piada, e reerguer o prestígio em queda, provando que não era admirada à toa.

Em outra ocasião, foi diferente.

O intervalo era importante. Um dos raros em que o telespectador tinha a oportunidade de surgir na tela ainda sagrada aos ídolos e limitada a aparições de pobres mortais.

O sortudo havia sido sorteado num concurso, e o prêmio lhe seria entregue ao vivo e em preto e branco.

Compareceu exultante. Neyde o apresentou, enaltecendo-lhe a sorte de ter sido agraciado com o presente espetacular. Um jogo de pratos nada comuns. Eram inquebráveis.

Animadíssima, entusiasmada, convocou o premiado para testarem a resistência anunciada do prêmio.

— Vamos jogar os pratos no chão juntos. Um, dois, três…

Espatifaram-se.

Não tem ligação com a referência que fiz à alma quando se afasta além dos limites seguros. Mas a transmissão ao vivo também é uma caixinha de surpresas.

Principalmente quando o protagonista vai longe demais.

Hoje,

Vídeo do dia

  • Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Franscico, Interior da Bahia, cronista de ABCD REAL, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro. Entre seus maiores sucessos como compositor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra vez na estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá) , “Espanhola” (com Flávio Venturini), Dona e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas.

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