BEM LEMBRADO, GUARABYRA

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Guttemberg Guarabyra

Só após estarem salvos, tomaram ciência dos gritos de um passageiro que não tinha conseguido escapar, e continuava no interior do vagão dependurado.

Meus dois irmãos mais velhos sofreram um acidente de trem.

O comboio atravessava uma ponte quando descarrilou. O vagão em que estavam ficou dependurado. Com dificuldade, conseguiram escalar até a segurança.

Em casa, nos contaram como a escalada havia sido perigosa. O óleo das engrenagens havia se espalhado e tornado tudo escorregadio. E contaram também como, só após estarem salvos, tomaram ciência dos gritos de um passageiro que não tinha conseguido escapar, e continuava no interior do vagão dependurado.

Naquele momento, os passageiros já haviam se aglomerado no alto da ponte e conferido os estragos. Poucos haviam se machucado. Nenhum em estado preocupante, a não ser a vítima ainda dentro do vagão, que ninguém se dispunha a socorrer, visto a possibilidade de desabar a qualquer momento.

Para encurtar, foram os manos que se dispuseram a voltar ao vagão dependurado e salvar o ferido.

O intrigante nessa história é a frequência com que narraram a história nos dias que se seguiram à viagem. Tendo a foto do desastre à mão, publicada num jornal, mapeavam com orgulho o salvamento e detalhavam o episódio com frequência.

Até que, em algum momento, foi totalmente esquecido. Nunca mais tocaram no assunto. E, misteriosamente, as memórias do acontecimento viraram fumaça de maria-fumaça.

Conto o caso porque estava pensando em quantas vezes nossa sobrevivência não esteve por um triz (quase digo por um trilho).

Na estrada, certa vez, trafegava por mais um ‘longo trecho em declive’. A pista ladeira abaixo encontrava-se livre e desimpedida, e eu tinha aprumado o carro numa aerodinâmica suave, quase deslizando ao vento por uma curva regular e aberta.

Porém, na outra mão, acumulavam-se caminhões e carros menores. Entre eles não sobrava nenhum vão, tal a proximidade com que trafegavam, quase parando na subida.

Nesse cenário, um automóvel, impaciente, ainda fora do meu campo de visão, saiu da fila para tentar uma ultrapassagem que o colocasse mais à adiante.

Quase ao final da curva deparei-me com ele à minha frente.

Meu primeiro instinto foi sair para o acostamento. E aí entra aquela coisa do destino. Justamente naquele trecho ele não existia. Tive que reduzir marcha a marcha, intercalando com enterradas do pé no freio, fazendo tudo para evitar uma derrapagem que me lançasse, sem controle, de encontro ao outro veículo. Parei a dois metros da colisão.

Esses segundos pareceram horas. Enquanto os carros na outra mão, notando o acontecido, abriam uma vaga para que o casal (havia um casal no outro veículo) retornasse à fila de onde jamais deveria ter saído, eu vigiava o retrovisor a ver se não surgia um outro carro em velocidade atrás de mim. Se viesse, eu me espremeria para fora da pista, tentando não ser atingido caso não conseguisse parar.

No fim deu tudo certo, segui viagem, não sem antes aguentar os berros irados de um de meus companheiros de viagem exigindo que eu voltasse, porque pretendia aplicar uma lição no motorista irresponsável.

Noutra ocasião, numa madrugada em Copacabana, eu e meu parceiro Sá estávamos a bordo de um carro dirigido pelo impagável Mariozinho Rocha.

Eu viajava no banco traseiro, Sá no de passageiros enquanto Mariozinho dirigia e ao mesmo tempo nos contava mais uma de suas histórias hilárias.

Só que, quando em vez, virava-se para trás a fim de transmitir-me com mais definição alguns trechos.

Até que ao contar parte da história virando-se para trás, demorou-se na narrativa e, enquanto o carro em velocidade seguia em linha reta, a rua fazia uma curva que o motorista ignorava.

Ao notar que o desastre estava prestes a acontecer, gritei apavorado: Mariozinho! Mário voltou-se rapidamente para a frente, e corrigiu o trajeto ainda a tempo de evitar o pior.

Mas nem sequer suspirou de alívio, como fizemos eu e o parceiro, tampouco mostrou-se minimamente abalado. Apenas exclamou um “Bem lembrado, Guarabyra!”, e continuou o caso de onde o havia interrompido.

Tive que rir.

Bem lembrado aqui, e bem esquecido lá.

De toda forma, todos sobrevivemos.

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Música do dia

  • Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Franscico, Interior da Bahia, cronista de ABCD REAL, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro. Entre seus maiores sucessos como compositor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra vez na estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá) , “Espanhola” (com Flávio Venturini), Dona e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas.

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