Guttemberg Guarabyra
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No palácio ministerial, o piso enceradíssimo, em sociedade com as solas de couro lisas dos meus sapatos novos, valeu por uma verdadeira pista de patinação no gelo.
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A questão era se comprava ou não sapatos novos para a reunião.
Haveria cobertura da imprensa, repórteres, fotógrafos, quem sabe televisão, e o único par de sapatos, preferido, insubstituível, companheiro de todas as jornadas diárias, encontrava-se num estado nada apresentável para cerimônias.
Desconhecia se, na peregrinação pelas longas passarelas dos aeroportos, os pés estranhariam o calçado não amaciado. Mas vá lá. Tudo pela importância do momento.
O encontro visava estabelecer um escritório que centralizasse a arrecadação de direitos autorais.
O recolhimento dos direitos dos autores era realizado por sociedades arrecadadoras. O autor se filiava a uma delas e delegava a elas a missão de cobrar das rádios, clubes, enfim, de todo estabelecimento que utilizasse música para obter lucros, em todo o território nacional, um percentual como compensação pelo direito de utilizar a obra.
Como existiam pelos menos oito sociedades, isso significava empregar em cada área geográfica o mesmo número de fiscais, cada um representando uma arrecadadora. A multiplicação de funcionários exercendo a mesma função em cada área, resultava, no final das contas, em quase 60% do arrecadado apenas para cobrir despesas, diminuindo substancialmente o dinheiro que deveria seguir até o bolso dos autores.
Uma atualização da lei de direitos autorais seria votada e precisávamos convencer a bancada governista, que contava com muitos elementos ligados ao velho esquema de arrecadação, de que nossa proposta deveria ser aprovada.
A comissão eleita para a negociação com o Ministro da Educação, sob cuja jurisdição se encaixavam as questões de direito autoral, e comandava a bancada governista nesse quesito, constava desse que vos escreve, do poeta Hermínio Bello de Carvalho, do grande Cartola e de Macalé, que já se encontrava em Brasília a nos esperar, e do inesquecível Dr. Pedrylvio Guimarães, herói dessa empreitada, que nos alicerçou com definitiva e competente assessoria jurídica.
Mal levantamos voo, Hermínio, no assento ao meu lado, cujo traumatizante medo de avião eu desconhecia, apertou-me o braço na decolagem ao ponto de causar um hematoma. Na volta, claro, mudei de assento. Lembrei de Belchior. Mas Bel, na música, precisou apenas segurar a mão, e não dilacerá-la.
No palácio ministerial, o piso enceradíssimo, em sociedade com as solas de couro lisas dos meus sapatos novos, valeu por uma verdadeira pista de patinação no gelo.
Cada passo se transformava em automático escorregão, e precisava me reequilibrar, enquanto a imprensa, ignorando meu drama, nos acompanhava pelo corredor compridíssimo crivando-nos de perguntas.
No final deu tudo certo. Dr. Pedrylvio demonstrou brilhantemente como a defesa do Direito Autoral era uma luta justa, e a bancada governista acabou aprovando a nossa reivindicação.
Mas o jogo estava apena no início.
Na volta ao Rio, a luta continuava.
Para integrar o Conselho Nacional de Direito Autoral, cujos membros eram eleitos por indicação, e detinha o poder de interferir nos rumos de nossa proposta, havia sido sugerido um nome intimamente ligado às sociedades do antigo esquema.
Precisávamos urgentemente publicar um abaixo assinado consistente demonstrando nossa contrariedade com a indicação.
No entanto, para que chegasse a tempo, o documento deveria ser enviado à imprensa na manhã seguinte, e o dia já estava indo embora.
Saímos a campo.
Enquanto outros da equipe se espalhavam na caça às assinaturas, tive a ideia de juntar duas mesas na entrada do badalado Bar Luna, em que a intelectualidade carioca da época se reunia, e fazer delas um balcão de recolhimento de adesões.
Lá pelas onze da noite, depois de terminados os espetáculos, foram chegando os colegas. Explicava detalhadamente o objetivo da assinatura, mas nem sempre os argumentos resultavam numa nova adesão.
Elis Regina chegou ao bar.
Nem precisei chamá-la. Veio diretamente à mesa, assinou o documento e a seguir pediu uma cadeira.
— Não vim só assinar. Vim para ajudar você.
Sentou-se ao meu lado e trabalhamos juntos até o encerramento da noitada.
Imaginem se não conseguimos as assinaturas necessárias.
O abaixo-assinado foi publicado em tempo e derrubou a indicação.
Muitas lutas ainda foram necessárias para a consolidação do ECAD (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição), hoje ainda carente de muitos aperfeiçoamentos.
Mas era bem pior sem ele.
Ave Elis, Pedrylvio, Hermínio, Cartola, Macalé, e a todos que lutaram e ainda lutam pela moralização da arrecadação do direito autoral no Brasil.
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Música do dia
- Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Franscico, Interior da Bahia, cronista de ABCD REAL, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro. Entre seus maiores sucessos como compositor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra vez na estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá) , “Espanhola” (com Flávio Venturini), Dona e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas.