Por Guttemberg Guarabyra*
Quando ela começa a remexer as gavetas, resolvo imediatamente me alienar desse momento. Estou deitado na cama e a janela mostra um céu azul manchado de grandes nuvens brancas. As nuvens passam depressa. Há muito vento lá em cima. Passam da direita para a esquerda, sugerindo as formas que sempre nos remetem à infância. Ora são animais de cara comprida, feito jacarés e elefantes, ora uma espécie de soma dos dois. Aquela ali me lembra uma velha bruxa sorrindo, com um pano amarrado na cabeça, que passa voando se desfazendo nas bordas. Sei que estão se movendo com rapidez porque há uma mudança de tempo a caminho. O barulho de um trovão longínquo já me alertara disso há umas duas horas. Se naquele momento tivesse chegado à porta da varanda, de onde se vê as serras, teria divisado, com certeza, as nuvens carregadas. Agora já devem estar bem próximas, penso.
O súbito ruído de madeira se atritando e a pancada seca da gaveta me tiram do sossego, com um susto. Ela se põe de pé segurando nervosamente um feixe de roupas. Um sutiã cai no carpete. Agacha-se rapidamente, apanha-o e sai do quarto em direção à sala onde duas bolsas cheias de objetos que lhe pertencem estão prontas para serem fechadas.
Fazia muito a coisa não ia bem. Fica difícil explicar para uma mulher tão amiga, tão linda, que vai ser melhor a gente ficar só. Começou de brincadeira… Tem um samba de bossa nova que fala disso. Tinha sido assim com a gente: “Começou de brincadeira, de uma insinuação, o amor tinha chegado e a mentira sem querer virou verdade.” A lembrança da bonita melodia me levanta o astral. A bossa nova, além do mais, tem tudo a ver com nuvens — com “bandos de nuvens que passam voando”, conforme falava uma letra.
Esses pensamentos, porém, são, na verdade, apenas um macete para fugir da realidade. Ela está indo embora. E isso dói. E muito.
Pela janela, um ventinho frio começa a incomodar. As primeiras nuvens acinzentadas surgem. Ela fala ao mesmo tempo em que estala o primeiro grande trovão, que encobre sua voz e não me deixa entender o que foi dito. Como não insiste no assunto, concluo que deve ter sido uma frase que não exige resposta.
Melhor assim. Já nos propusemos tudo o que foi possível, e as palavras já nos machucaram o bastante. Nenhuma proposta fora aceita por qualquer dos dois lados. Todas apenas expuseram mais nitidamente as imperfeições de uma relação inviável. Não que uma relação tenha de ser perfeita para sustentar-se. É que as imperfeições dessa tinham extrapolado. Se se comparasse as horas boas com as ruins o saldo seria amplamente favorável às últimas.
O céu escurece rapidamente. Lá fora daqui a pouco os carros terão de andar de faróis acesos como se fosse noite. Ela retorna ao quarto e acende a luz — no preciso momento em que um raio faísca. Sinto-me flagrado, triplamente fotografado: pela luz forte e azul do raio, pela lâmpada do teto sobre a cama. E pelos olhos vivos que me fitam. Nada a dizer. Sei que ela tenta revelar-me algo. No entanto, recua calada, apaga a luz e sai.
As nuvens que passam nesse momento pela janela são negras e cada vez mais baixas. Eu as adivinho a roçar o topo do prédio, a esconder as antenas e a envolver com ainda mais mistério e dor essa tarde aflita e estranha. Fico de joelhos na cama, estico-me até alcançar o vidro corrediço da janela e o forço, fechando-a. Isso me protege do vento mas não dessa sensação maluca de insegurança. Vontade de voltar atrás, de dizer que fique, que talvez valha a pena tentar de novo etc., etc. Mas temo fazer de nossas vidas um chavão igual a esse tipo de declaração, e resisto.
É quando o barulho familiar da porta da rua se abrindo me chega aos ouvidos. Trata-se do último ato. Um calafrio feito uma corrente elétrica perpassa meu corpo. Em minha mente surge a imagem nítida da porta se fechando com velocidade. Crispo meus dedos no travesseiro, o estrépito de um trovão se funde com a batida estrondosa da porta. O apartamento treme, a chuva cai pesada, instantânea, e se choca contra a vidraça. Chove enfim. E o meu rosto também se inunda na tarde escura e fria.
Música do dia
- Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Francisco, Interior da Bahia, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro, cronista de ABCD REAL, publica, às segundas e sextas-feiras crônicas de seu livro “Teatro dos Esquecidos” e outras.
- O livro pode ser adquirido pelo https://editorathoth.com.br/produto/teatro-dos-esquecidos/106
- Esta crônica, por exemplo, “As nuvens passam depressa”, está nas páginas 61, 62 e 63 dessa publicação imperdível, do mesmo nome.
- Entre os maiores sucessos de Guarabyra como compositor e cantor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra Vez na Estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá), “Espanhola” (com Fávio Venturini), “Dona” e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas publicadas na grande imprensa, entre elas, em conclusão, o Diário Popular.