As flores dos terraços

In ABCD, Artigo On
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Por Guttemberg Guarabyra*

Dizem que o calor prematu­ro trouxe a primavera an­tes do tempo. As orquídeas de­sabrocharam prematuramente. É a Natureza exercendo seu direito de ordenar o mun­do conforme sua mercê. Quem pensava que o inverno seria sem tréguas logo come­çou a reconhecer nos ciclistas em núme­ro cada vez maior na região do parque do Ibirapuera um espírito de verão. As pes­soas que também imaginavam só apre­ciar as tradicionais varandas floridas de Sampa depois de setembro viram que a floração chegou bem antes e, quem sabe com ela, um afrouxamento de nervos, visto que as ten­sões não têm sido poucas.

Na maré dos maus acontecimentos, os que mais sofrem são justamente aque­les que mais presenciaram dias tranqui­los em nossa cidade: os idosos paulista­nos. Eles se vestem como quem tenta pre­servar o domingo por mais dias. Fazem parte de um movimento silencioso de re­sistência que não aceita que o rancor se dissemine como erva daninha. Saem às ruas e recebem apoio do al­to dos prédios na forma das flâmulas co­loridas das flores nas varandas. As senhoras, de ruge e sapatos brancos; eles, polegares nos suspensórios; todos meditando sobre o que terá causado a mudança e por que se sentiam mais felizes e seguros de si, antigamente. Combatentes ferrenhos, lançam-se às ruas, teimosos.

Bem, o espírito de primavera invadiu-me ontem à tarde quando deparei com o calor temporão das ruas. As flores ainda não chegaram plenamente. Até que isso aconteça, os velhos conti­nuarão as passeatas à procura do eterno do­mingo sem contar com o apoio das sa­cadas. Mas em breve a Na­tureza os so­correrá com força. Fico pensando se esse ímpeto com que a es­tação se precipita não terá como objetivo derrotar o bicho-homem. Tenho medo. Temo que a primavera apenas chega todo ano para constatar se ainda somos apenas uma ameaça. Quando tivermos ultrapassado o ponto proibido, desapareceremos, e to­dos os seres viventes do Universo que expulsamos, serão, então, ordenados a iniciar a retomada. As plantas, esqueci­das nas varandas, em sua maioria definharão nos vasos. Em compensação, mi­lhares sobreviverão, que, introduzindo-se nas frestas das paredes, encontrarão alimento. Elas, resistentes, se transfor­marão numa gigantesca e altíssima floresta, assentada acima dos prédios. Quem sabe restem apenas índios, que, protegidos pela floresta distante, conse­guirão escapar da morte (não me pergun­tem o motivo desse fim do mundo; há muitas teorias, escolhi esta que deixa so­breviver tudo o que é selvagem). Iriam es­calar o Terraço Itália e tomar um licor Drambuie. No McDonald’s, capaz que não achem nada que já não tenha sido consumido — e adivinharão naquele M estranho e colorido o símbolo de algu­ma religião, já que templos admiravelmente idênticos se espalharão por toda a estranha e confusa mata.

Viagens à parte, é sempre um prazer sonhar com um mundo diferente do que vivemos hoje. Talvez tenha ido longe demais ao achar que o atual não terá mais conserto, a não ser que eliminemos não o bicho-homem, que preservei em minha fantasia, mas o homem-bicho, que, ao perder as florestas, trocou de qualidade primordial e, menos animal, aproxima-se pouco a pouco de um robô. Provavelmen­te a frieza e a desumanidade tão fáceis de detectar em suas personalidades, hoje, estejam presentes porque evoluem para seres que não terão sentimentos conside­rados humanos — e não serão mais capazes de se vestir domingueiros à procura do cheiro da primavera. Claro, ro­bôs não respiram. Ou melhor, talvez so­brevivam inspirando apenas e tão-so­mente o ar poluído que restará. Sendo as­sim, um dia, no futuro, quando apenas ar irrespirável puder ser absorvido pelos pulmões dos ex-homens-bicho, se dará o tempo que prenunciei, em que a prima­vera irromperá tão poderosa que purificará à força a atmosfera. Sem dó nem piedade, nos matará asfixiados de ar puro. Salvar-se-ão apenas, como apregoa a Bíblia, nada mais que os bem-aventura­dos. E, entre eles (não tenho dúvida), os resistentes idosos paulistanos, garbosos como sempre, saboreando a vitória entre as flores dos terraços.

Música do dia

Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Francisco, Interior da Bahia, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro, cronista de ABCD REAL, publica no portal crônicas de seu livro “Teatro dos Esquecidos” e outras.
O livro pode ser adquirido pelo https://editorathoth.com.br/produto/teatro-dos-esquecidos/106
Entre os maiores sucessos de Guarabyra como compositor e cantor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra Vez na Estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá), “Espanhola” (com Fávio Venturini), “Dona” e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas publicadas na grande imprensa, entre elas, em conclusão, o Diário Popular.

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