Aluno em tudo. Na vida, na música, na caipirinha.

In ABCD, Artigo On

Guttemberg Guarabyra

O maestro Rogério Duprat habitava um sítio na zona rural do município de Itapecerica da Serra. Éramos sócios num estúdio de gravação, na cidade de São Paulo.

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Não tenho o menor talento para a elaboração de coquetéis. Quando vejo na TV aqueles bartenders elaborando misturas e, depois de prová-las, o lamber de línguas dos (a)provadores, desconfio que há ali mais teatro do que realidade.

É muita cor, muito enfeite, muito um quarto disso, gotas daquilo pra não estar mais para alegoria do que a bebida dos deuses que cada alquimia parece transformar.

A única bebida que arrisco elaborar sem medo de dar vexame é a invariável caipirinha de saquê.

E mesmo assim porque tive um professor e tanto.

O maestro Rogério Duprat habitava um sítio na zona rural do município de Itapecerica da Serra. Éramos sócios num estúdio de gravação, na cidade de São Paulo. E de vez em quando, quase sempre em finais de semana, o visitava.

Chegava no meio da tarde já sabendo que, pouco antes do nascer da noite, o sagrado rito diário de a família se reunir ao redor da mesa de centro, baixinha, quase ao nível do chão, de tampo de mármore branco, para apreciar a preciosa caipirinha de limão que o maestro (desculpem o termo repetitivo) preparava com maestria, aconteceria sem falta.

Nos momentos que antecediam o acontecimento, Duprat se retirava em direção à copa para cortar os limões, sacar o açúcar da prateleira, providenciar o balde de gelo e ordenar tudo, inclusive, claro, a garrafa de cachaça, sobre a bancada de pedra próxima à pia.

Intrigado sobre como o maestro jamais perdia o compasso e a cada dia apresentava aquela mesma música precisa e preciosa (hoje é dia de associação de termos) sem nenhuma alteração na partitura que a diferenciasse das obras anteriormente apresentadas, resolvi acompanhá-lo nos preparativos.

Procurei seguir passo a passo o compasso da ópera. Do momento de lançar o gelo nos copos até o ângulo da faca ao ferir os limões.

Pois mesmo assim jamais consegui imitar-lhe exatamente a caipirinha.

Hoje, minha versão não leva cachaça, mas saquê. No mais, ela é o que consegui absorver dos ensinamentos do maestro.

No Rio de Janeiro (me veio à lembrança agora), no auge do estouro inicial do trio Sá, Rodrix e Guarabyra, lotávamos auditórios.

Um dia, surgiu sabe-se lá como, nos camarins de um de nossos shows, um jovem, dinâmico, barulhento e cômico bartender argentino. Budini surgiu com um carregamento de bebidas várias para oferecer-nos um dos drinks com que havia vencido inclusive competições internacionais.

E nos provou isso com fotos e drinks realmente muito bons.

A partir desse dia, integrou-se à equipe. Como não havia necessidade de empregar um bartender em regime integral, depois de nos fornecer altos drinks para incrementação de astral nos momentos anteriores às entradas nos palcos, prestava, durante as apresentações, serviço de auxiliar da produção.

Só notamos que havíamos dado uma dose excessiva de confiança ao bartender quando em um de nossos shows, em que agruparam-se, do lado de fora do teatro lotado, muitos fãs que não haviam conseguido ingressos, soubemos que Budini havia posto ordem no tumulto baixando porradas a torto e a direito com um inacreditável bastão de madeira.

Antes que alguma medida judicial quebrasse a coqueteleira da paz de nossas produções, que sempre foram muito ordeiras e pacíficas, resolvemos desmisturar o drink dos camarins, e o dispensamos.

Beber é na paz, aprendi de vez.

E, assim, enquanto corto os limões, cuidando de dividi-los utilizando o mesmo ângulo de faca utilizado pelo maestro, e observando a medida das frações para que sejam o mais possível do mesmíssimo tamanho das que via o maestro orquestrar, sinto-me honrado por ter sido seu aluno em tudo. Na vida, na música, na caipirinha.

Lanço as pedras de gelo no copo. Faço-as tilintar. É música. Ergo o drink ao céu. Maestro, mestre, essa canção embriagadora é pra você. Tim tim.

 

  • Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Franscico, Interior da Bahia, cronista de ABCD REAL, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro. Entre seus maiores sucessos como compositor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra vez na estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá) , “Espanhola” (com Flávio Venturini), Dona e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas.

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