Por Guttemberg Guarabyra*
Às vezes penso que seria uma sorte se eu já tivesse nascido em um lar em que a música estivesse presente no dia a dia. Falo porque estive tentando escrever a melodia e os acordes de uma canção que criei, a ver se um amigo poderia interpretá-la. Tentei por várias horas organizar a partitura, mas não consegui. Teria de ter maior conhecimento da escrita musical para obter êxito. Fico com inveja dos que tiveram em casa, desde pequenos, a companhia de um músico. Penso em Strauss, cujo pai era trompista de sinfônica. Quando notou que o pequeno Richard tinha aptidão para a coisa, facilitou-lhe a vida de modo que pudesse aprender o mais possível da arte do pentagrama.
No meu caso, durante o tempo em que minha mãe, Cecy, era missionária no sertão, ainda pude me deliciar com a presença cotidiana de um instrumento musical em minha casa, na figura do velho órgão de fole em que ela passava horas ensaiando enquanto eu me aboletava em seu colo. Quando abandonou as missões, nunca mais tive a presença luxuosa daquele pequeno instrumento a esparramar acordes pela casa inteira. Foi uma pena. No entanto, a semente da música já havia sido plantada em meu cérebro e em meu coração. E haveria de brotar.
Anos depois, já morando no subúrbio niteroiense, meus irmãos mais velhos se cotizaram e compraram um violão. Aprenderam um pouco e começaram a ensaiar um trio vocal com um primo. Naquela época, as condições financeiras da família eram bem precárias, e a simples aquisição de um instrumento decente era um acontecimento memorável. Infelizmente, e justamente por isso, foi-me vedado o acesso a ele com o argumento de que eu, ainda muito novo e irresponsável, poderia quebrá-lo. A não ser quando podia dedilhar aquelas cordas durante o intervalo dos ensaios, meu contato íntimo com a música limitava-se a apreciar o violão em cima do armário, sob a vigilância severa de minha mãe, que meus irmãos deixavam como guarda.
Mas mãe é mãe, e é evidente que um dia ela o liberou para que eu pudesse manuseá-lo enquanto os dois estavam no trabalho. O momento em que pude tocá-lo, experimentá-lo sem que ninguém estivesse a vigiar, foi inesquecível e representa uma ocasião sagrada em minha vida. O dilema é que eu não sabia como usá-lo. Para conseguir explorar aquele tesouro, tive, eu mesmo, de ir montando os acordes, corda a corda, dedo a dedo, nota a nota e, em seguida, com a voz, ir somando alguma melodia. Foi dessa forma que, antes mesmo de dominar o instrumento, já havia me tornado compositor.
Meses mais tarde, estava a interpretar, com sentimento e aos brados, algumas canções de minha pequena, porém, decente lavra, quando um dos irmãos retornou inesperadamente do trabalho sem que eu percebesse. Ao divisá-lo na porta do quarto, estupefato, de olhos bem abertos olhando em minha direção, a primeira reação que tive foi a de recolocar imediatamente o violão na capa e encaminhá-lo de volta para cima do armário, enquanto ia balbuciando umas palavras de desculpas. Surpreendentemente, em vez de me censurar, apenas indagou quem havia me ensinado a tocar daquele jeito. Ao saber que havia aprendido sozinho e que as músicas eram de minha autoria, quase caiu de costas. A partir daquele momento, transformou-se em meu maior incentivador.
Mas, ainda assim, não passei desse músico que consegui ser —: tremendamente limitado. Gostaria de ter tido dilemas mais satisfatórios, como aquele que viveu o menino Strauss durante toda a infância. Era proibido de interpretar as partituras de Wagner, que seu pai, segundo a história, inexplicavelmente detestava — apesar de interpretá-las lindamente. Evidente que, um dia, já com o apoio do pai e a admiração da sociedade, pôde colocar as mãos numa partitura do grande mestre. Disse que a devorou de uma só vez. Acho que foi a mesma sensação, guardadas as devidas proporções, que tive ao — com o consentimento de dona Cecy — preencher meu quarto, sem que ninguém me reprimisse, com o som pleno daquelas cordas. Havia um mundo ali ao qual eu não tinha acesso e cujas portas tinham acabado de se abrir.
Música do dia
- Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Francisco, Interior da Bahia, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro, cronista de ABCD REAL, publica, às segundas e sextas-feiras crônicas de seu livro “Teatro dos Esquecidos” e outras.
- O livro pode ser adquirido pelo https://editorathoth.com.br/produto/teatro-dos-esquecidos/106
- Esta crônica, por exemplo, “A semente da música”, está nas páginas 37 e 38 dessa publicação imperdível.
- Entre os maiores sucessos de Guarabyra como compositor e cantor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra Vez na Estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá), “Espanhola” (com Fávio Venturini), “Dona” e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas publicadas na grande imprensa, entre elas o Diário Popular.