Por Guttemberg Guarabyra*
Morava no Rio de Janeiro no final do ano de 1967, quando comprei meu primeiro gravador a pilha e, imediatamente, parti com ele para Paratinga, no sertão do Rio São Francisco. Apenas alguns velhos do lugarejo ainda conservavam na memória as estrofes da marujada, e eu tinha que registrá-las. Só não o havia feito antes porque Paratinga, até aquela ocasião, não dispunha de energia elétrica nem existiam ainda os gravadores a pilha. Quando a novidade surgiu, fui um dos primeiros, no Brasil, a adquirir um exemplar do equipamento, um heroico Phillips, que era acionado por meio de uma tecla corrediça que eu devia empurrar a duras penas com o polegar. Só esse dedo tinha força suficiente para movê-la.
Comigo seguiam meu irmão Gilson e um amigo, Evandro, arrebanhados em minha passagem por Bom Jesus da Lapa, também no sertão do São Francisco. A certa altura do estradão de areia, que nem sequer se poderia chamar de caminho, sob um sol de 40 graus e um calor ainda maior proveniente da areia quente, deparamos com uma tropa de ciganos de pele morena como a dos indianos. Assim que nos viram, aproximaram-se, ameaçadores; mas, após se certificarem de que éramos de paz, tocaram os cavalos até a sombra do grande juazeiro, onde aguardávamos a vinda de outro carro, que chegaria na margem oposta do rio sem ponte. Depois que o atravessássemos, meio a pé, meio a nado, nos levaria adiante, após dispensarmos o veículo que nos havia trazido até ali. Os ciganos apearam e se acomodaram.
Surgiram, então, as mulheres, com vestidos e cabelos longos e, logo, um garotinho. Resolvi brincar com eles e gravei a voz da criança. Foi um alvoroço. Em sua língua estranha, confabularam excitadamente e, em seguida, vieram com a oferta. Desejavam comprar o gravador. Queriam levar a voz do menino com eles. Tentei explicar que de nada adiantaria, que logo a energia das pilhas se esgotaria e eles ficariam de posse de uma inutilidade. Não houve acordo. Trouxeram medalhas, moedas estranhas e antigas que atiravam na areia à nossa frente. A muito custo conseguimos dissuadi-los e, assim que o carro apontou do outro lado, reunimos nossas coisas e fomos tirar a roupa atrás de uma moita, pois tínhamos de fazer a travessia segurando nossos pertences acima da cabeça.
Ao todo, alcancei Paratinga após quatro dias de viagem. Os outros, em apenas um dia, já que haviam se juntado à expedição na vizinha cidade da Lapa. Na casa de sinuca local, debaixo de muita cerveja, fizemos uma preleção aos jovens da cidade, tentando convencê-los de como era importante convocar seus avós e bisavós a cantarem uma marujada, para que a gravássemos. Compreenderam, apesar de muitos acharem que aquilo tudo era um atraso. No terreiro da pensão de dona Rosa, ao cair da tarde seguinte, foram chegando, timidamente, os velhinhos. Alguns já muito fracos, amparados pelos filhos e netos. Outros ainda garbosos, exibindo vitalidade. A maioria com um pedaço de pau servindo de bengala.
Acomodaram-se num grande círculo de cadeiras que havíamos preparado. Muitos não se viam há tempos. O ambiente, marcado pelos reencontros, foi se tornando descontraído. Então começou a cantoria. As melodias, lindíssimas, iam sendo registradas pelo aparelho, enquanto eu corria para todos os lados atrás dos solistas e das melhores vozes. Ora irrompia um ritmo vibrante, mistura de frevo e marcha, ora uma melodia triste como prece, sublinhando o diálogo dentro do navio em alto-mar. Emocionados, reconhecemos fragmentos do Auto da barca do inferno, de Gil Vicente, dramaturgo português que viveu à época do Descobrimento.
A festa acabou tarde da noite, todos admirados de se ouvirem na fita. No dia seguinte, continuei gravando tudo o que poderia desaparecer da riqueza do folclore de Paratinga, incluindo causos do contador de histórias João de Barros e da feiticeira Luiza Preta, que nos narrou como, por vingança, matou uma criança ainda na barriga da mãe. “Já nasceu largando a pelinha dos braços…” Em meio aos relatos de feitos carregados de crueldade — que eu absolutamente não creio que ela tenha realmente cometido — ouço ainda hoje, nas fitas, o cantar das aves no silêncio em volta de sua casa perdida no tabuleiro do São Francisco.
De volta ao Rio, fiz cópias para gravador de rolo e doei-as para o Museu da Imagem e do Som. Na ocasião, seu presidente sugeriu que me fosse outorgada uma medalha de merecimento pelo fato. Dispensei com jeito a homenagem, solicitando apenas que ele cuidasse de preservá-las muito bem, para que, se um dia eu extraviasse meus originais, pudesse recuperá-los por meio das cópias que cedera àquele centro de documentação.
E, já que há alguns anos não encontro uma das duas fitas que usei na gravação da cantoria, acho que vou pedir, em troca daquela medalha desnecessária, uma cópia do tesouro. Esta, sim, indispensável para quem só tem gravada, hoje, na lembrança, a memória daquele povo inesquecível. E, em fita, metade de uma marujada.
Encenação e música do dia:
*Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Francisco, Interior da Bahia, cronista de ABCD REAL, publica, às segundas e sextas-feiras crônicas de seu livro “Teatro dos Esquecidos” e outras. Esta crônica, “A marujada”, está nas páginas 29, 30 e 31 dessa publicação imperdível. Músico, compositor, escritor e poeta brasileiro. Entre seus maiores sucessos como compositor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra Vez na Estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá), “Espanhola” (com Fávio Venturini), Dona e muito mais. Escreveu da mesma forma O Outro Lado do Mundo, além de inúmeras crônicas publicadas na grande imprensa, entre elas o Diário Popular.