A MÃO NO FOGO

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Guttemberg Guarabyra

Acusou-me de traidor e agente a serviço da Globo.

— Compositor o quê?

Assistir à entrevista com Paulinho da Viola no Conversa com o Bial me transportou a um mundo de reminiscências.

No quintal do Teatro Jovem, na praia de Botafogo, no Rio, fomos discretamente chamados, eu e Paulinho, pelo poeta José Carlos Capinam, para acompanhá-lo até um cantinho discreto e mal iluminado do jardim.

Não lembro se algum show ainda rolava no auditório no interior do teatro ou se as funções da noite já haviam se encerrado. O encontro era para apresentar ao poeta as melodias assentadas em dois de seus poemas que havíamos combinado de musicar.

O primeiro a mostrar a parceria, Bloco da Vida, fui eu.

Iniciante na carreira, aos 17, esperava que o poeta, recém-chegado da Bahia e já admirado e respeitado, pedisse alguns ajustes na melodia. Porém a aprovou sem exigir nenhum retoque.

Recolhi meu violão e foi a vez de Paulinho mostrar a melodia criada para Maria Mariô (Canção para Maria).

Naquele cantinho, ouvi em primeira mão a música de cair o queixo. Bom presenciar uma obra prima sendo parida.

No célebre Solar da Fossa, hospedaria de compositores, cineastas, atores e autores que dominariam a mídia em breve, Paulinho dividia um quarto com outro amigo, o poeta Abel Silva.

Como eu morava longe da Zona Sul e nem sempre conseguia pegar o último ônibus da noite que me levaria pra casa, a dupla permitia meu descanso num colchão improvisado entre as duas camas.

As camas do solar eram altas. E no meio da noite corria um vento frio ao rés do chão.

O frio me fazia rolar instintivamente, sem acordar, para debaixo da cama mais próxima, a de Paulinho.

Na manhã bem temprana, Paulinho saía para cumprir compromissos e me acordava avisando que a cama dele estava livre.

Não há como esquecer do rosto, que, do meu ponto de vista no esconderijo, se apresentava de cabeça para baixo, e da fala delicada me liberando a carona no colchão acima.

Nem dois anos se passaram da época em que dormia aproveitando a carona no quarto dos poetas quando venci, aos 19, a parte nacional do Festival Internacional da Canção e pude alugar meu próprio quarto no Solar.

Pouco depois, aos 22, acabei dirigindo o mesmo festival, transmitido pela Globo e, na época, um dos maiores do mundo.

Quando a Globo começou a titubear no enfretamento da censura da ditadura (maldita rima) e o festival passou a fazer parte do cardápio da propaganda militarista, dei um basta.

Convoquei às escondidas um encontro na casa de Chico, o Buarque, a fim de expor aos colegas o problema e um plano capaz de neutralizar a agora arma de propaganda.

Em seu amplo apartamento na Lagoa, Chico dispôs algumas cadeiras em fileiras, num pequeno auditório improvisado. Uma pequena mesa à frente serviu de púlpito. Sentamos lado a lado.

Expus o plano aos presentes, parte da nata dos melhores compositores da época.

Finda a exposição, quis ouvir o que achavam.

O primeiro a opinar, Ruy Guerra, cineasta e letrista de Edu Lobo, entre outros, qualificou o plano como uma furada e ainda por cima me esculhambou.

Acusou-me de traidor e agente a serviço da Globo.

Perplexo, senti o plano desmoronar. Até que Paulinho, o da viola, pediu a palavra:

— Pelo Gut (meu apelido), eu ponho a mão no fogo.

O caráter e o histórico de honestidade incontestáveis por trás da frase viraram o jogo a meu favor, e o plano finalmente foi aceito e meticulosamente seguido.

Quem quiser saber dos detalhes dessa história, que teve a participação desde Vinícius e Tom a Marcos e Paulo Sérgio Valle, passando por Baden, Edu e outros, ela está muito bem documentada no livro A Era dos Festivais, de Zuza Homem de Mello. E sobre o Solar da Fossa, os detalhes estão no livro do mesmo nome, de Toninho Vaz.

Voltando ao Teatro Jovem, às sextas-feiras compositores já bem estabelecidos apresentavam novatos a uma plateia selecionada. Minha primeira apresentação aconteceu ali. Lembro como fiquei nervoso ao perceber Nara Leão numa das filas da plateia.

O compositor já reconhecido e apresentador da noite era ninguém menos do que Paulinho da Viola, que conhecia pessoalmente naquele exato momento.

A cadeira isolada no meio do palco me pareceu um deserto de solidão. Sentei-me, acomodei os microfones. Um para a voz, outro para o violão.

Paulinho anunciou.

— Temos aqui um compositor…

Consultou umas fichas que trazia às mãos. Não encontrando a informação nelas, afastou o microfone, aproximou-se de mim e perguntou-me ao pé do ouvido.

— Compositor o quê?

Música do dia

  • Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Franscico, Interior da Bahia, cronista de ABCD REAL, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro. Entre seus maiores sucessos como compositor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra vez na estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá) , “Espanhola” (com Flávio Venturini), Dona e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas.

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