Por Guttemberg Guarabyra*
Em 1972, morava no Rio e fazia parte do trio Sá, Rodrix & Guarabyra, que antes era uma dupla apenas: Sá & Rodrix. Minha adesão se deu quando, após encontrar Sá perambulando por Ipanema, soube que acabara de se separar da mulher e que ficara sem ter para onde ir, visto que a ex-esposa continuaria a ocupar o apartamento do casal. Convidei-o então para morar comigo num quarto na Rua Alberto de Campos, ali mesmo em Ipanema, num apartamento que eu dividia com alguns jornalistas, aparelhagem de som, instrumentos e caixas de bebidas — além das duas Marly, serviçais da casa, de quem desconfiávamos seriamente de que completavam o ordenado com suspeitos programas noturnos.
Convite aceito, Luís Carlos Pereira de Sá, a quem também denominamos doutor Pereira — já que possuía carteirinha da OAB, ainda na edição antiga, vermelha e vistosa —, veio morar conosco. A tal carteirinha até mesmo nos tirou de variados apertos estrada da vida afora. Por exemplo, aquele quando a PM da ditadura nos cercou num bilhar da Rua das Palmeiras, em Sampa, e nos enquadrou numa sinuca de bico. Os meganhas olharam as nossas figuras cabeludas e cavanhacudas e foram até legais, pois, antes de tomar as providências de praxe, quando se tratava de abordar elementos daquela estirpe — que consistia em aplicar logo um cacete para verificar se reconheciam se eram gente boa ou não pelos sotaques expressados nos gritos de “ai” —, tiveram a gentileza de nos pedir documentos.
Iniciaram por Rodrix, que tinha a vantagem de exibir os trajes menos escandalosos dos três e de portar uma carteira de músico profissional, de capa azul-claro e novinha em folha. Não foi liberado, mas pelo menos foi esquecido de lado por uns instantes. Ao se aproximarem de mim, percebi que meus companheiros ficavam mais nervosos do que eu, uma vez que tinham conhecimento do que eu apresentaria como cédula de identidade. Foi assim que assistiram, frios, quando eu meti a mão no bolso traseiro e trouxe de lá um monte de papéis em frangalhos. Depois, gentilmente, pedi licença ao policial que se interpunha entre mim e a mesa de sinuca, e, calmamente, montei uma desmontada carteirinha de papelão, de músico amador, no pano verde da mesa entre as bolas coloridas.
O primeiro momento foi de indescritível impacto. Os milicos que formavam a guarnição, agora incrédula, foram acercando-se, um a um, e debruçando-se sobre o tablado verde, calados e de olhos arregalados. Súbito, o sargento, de dois metros, foi acometido de um tremelique que lhe perpassou todo o corpo enquanto suas mãos tomavam a forma das de um estrangulador prestes a fazer mais uma vítima. Assim que as veias de sua garganta incharam a ponto de explodir, o doutor Pereira saltou entre nós dois já portando aquele misteriosíssimo caderno de capa vermelha e dura que identificava os indivíduos habilitados pela Ordem dos Advogados.
O gesto do PM, graças a Deus, pairou no ar enquanto seus olhos encaravam, magnetizados, a aparição cor-de-sangue. Vai ver que era mesmo a única cor que os trazia de volta a qualquer coisa parecida com a realidade. Mas o fato é que, naquele tempo, existia esse estranho paradoxo no Brasil. Tanto a polícia era totalmente arbitrária quanto uma carteira de advogado impunha inquestionável respeito. Hoje, acho que, das duas opções, a habilitação dos chamados defensores do Direito sofreu um certo desgaste enquanto a polícia, honrando a tradição, continua transmitindo os mesmos valores, de geração para geração.
Porém, iria contar apenas que, após aquele encontro com doutor Pereira, a dupla Sá & Rodrix passou a ensaiar em minha casa. E foi sugerindo como aquele acorde poderia ficar melhor e que aquela palavra na letra faria melhor sentido, que acabei sendo admitido na brincadeira, e a dupla virou um trio — que anos mais tarde acabaria se tornando novamente uma dupla, com a saída de Zé Rodrix. E contaria também que, antes de o trio se desfazer, viemos morar em São Paulo a fim de trabalhar no mercado de jingles contratados pelo fabuloso maestro Rogério Duprat.
Desembarcamos na Pauliceia ávidos por aventuras e nos deparamos com o enigma dessa cidade de rígido corpo de concreto, mas de coração tenro, como iríamos descobrir depois.
- Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Francisco, Interior da Bahia, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro, cronista de ABCD REAL, publica, às segundas e sextas-feiras crônicas de seu livro “Teatro dos Esquecidos” e outras.
- O livro pode ser adquirido pelo https://editorathoth.com.br/produto/teatro-dos-esquecidos/106
- Esta crônica, por exemplo, “Carteirinhas da ordem” , está nas páginas 73, 74 e 75 dessa publicação imperdível, do mesmo nome.
- Entre os maiores sucessos de Guarabyra como compositor e cantor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra Vez na Estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá), “Espanhola” (com Fávio Venturini), “Dona” e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas publicadas na grande imprensa, entre elas, em conclusão, o Diário Popular.