MEU AVIÃO DE SONHOS

In ABCD, Artigo On
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Guttemberg Guarabyra

Sentimentos confusos. Crianças livres torturadas por desumanos. Criminosos numa prisão humana.

Na beira do rio, tentava achar os pedregulhos mais lisos, redondos, moldados de modo a caber confortavelmente na palma da mão, para acrescentar à minha coleção.

Anos 50, no sertão, os brinquedos nasciam do chão, varetas, pedras, iam se transformando em imaginários personagens, fazendo brotar histórias.

Às vezes meu pai, advogado, me levava com ele até a cadeia para visitar algum cliente preso. A possibilidade de só haver inocentes ali era nula. No entanto, o ambiente muito limpo, calmo, poucos detentos, quatro ou cinco, se comparado às prisões de hoje, estava mais para pensão do que pra casa de punição.

Para ganhar um dinheirinho, os detidos fabricavam artesanatos. E muitos brinquedos. Um avião produzido com o alumínio aproveitado de uma lata do querosene Jacaré voou comigo por muitos meses. Made in Cadeia de Xique-Xique.

Procurava por mais brinquedos naquele dia na beira do rio.

Enquanto catava as pedrinhas, fui surpreendido por uma correria mais adiante, na beira do cais.

Meninos em uniforme escolar fugiam desesperados de um adulto que os perseguia.

Mais tarde ficaria sabendo que eram estudantes tentando escapar de um professor. De um professor e de sua palmatória.

Temiam frequentar as aulas, tal a severidade com que eram punidos caso não cumprissem rigorosamente os ditames do mestre feroz.

Eu havia chegado há pouco no mundo, tinha seis anos, e pela primeira vez me deparava com uma narrativa de tirar o sono, ao ser informado de mais detalhes do acontecido.

Os relatos de mãos inchadas, arrebentadas, de alunos considerados desobedientes, deixaram-me apavorado. Se escola era aquilo, queria distância.

Quando comentei em casa sobre o que ficara sabendo por colegas mais velhos, notei que depois disso, ao reencontrá-los, evitavam voltar ao assunto. Alguém lá de casa solicitou que não me narrassem histórias perturbadoras novamente.

Muitas dezenas de anos se passaram, estou a um mês dos 75, e a lembrança ainda voa comigo no bojo do avião dos presos entre centenas de nuvens de memória.

Outro dia, uma pequena notícia encontrada no acervo digital de um periódico antigo, surgiu em minha vida como um daqueles colegas mais velhos segredando-me histórias aterrorizantes.

Pesquisava sobre o paradeiro de um velho amigo. Consultei seu nome.

A pesquisa me levou ao acervo do jornal, o acervo destacou a notícia. O pequeno recorte agigantou-se quando notei o título do texto que trazia notícias do amigo.

“Agrediu o aluno e foi condenado”

Havia se tornado professor e agredido um aluno com tal violência “porque este se recusara a cumprir ordens suas”, que fora punido com três meses de prisão.

Daí veio tudo isso à cabeça.

Mexeu mais ainda com o coração.

Sentimentos confusos. Crianças livres torturadas por desumanos. Criminosos numa prisão humana.

Vou carregar meu avião de sonhos com os pedregulhos mais bonitos, e dormir fora do mundo essa noite.

Música do dia

  • Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Franscico, Interior da Bahia, cronista de ABCD REAL, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro. Entre seus maiores sucessos como compositor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra vez na estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá) , “Espanhola” (com Flávio Venturini), Dona e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas.

 

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