Guttemberg Guarabyra
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A tela de meu cinema tremelicando pela marcha a pé evoluía até encarar de frente a estampa humana, indecifrável, solene, agreste e profundamente misteriosa do louco.
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Na Rua da Baderna existia um quadro vivo.
Emoldurado pelo caixilho de madeira da janela, aspecto bruto, silencioso, sereno, o olhar doce do homem rude no centro do quadro descortinava o nada.
Era o Cabo Rufino.
Um enigma.
Na rua estreita, corredor de pequenas casas geminadas, ao me aproximar do quadro, do enigma, instintivamente passava para a calçada do lado oposto. E meu olhar, feito uma câmera, focalizava a moldura azul ainda distante.
Passo a passo, o quadro ia se tornando cada vez mais visível, a tela de meu cinema tremelicando pela marcha a pé evoluía até encarar de frente a estampa humana, indecifrável, solene, agreste e profundamente misteriosa do louco.
Não sei se sentia medo, respeito ou um misto dos dois sentimentos.
Pouco se falava nele.
Um dia, a porta da casa, quase sempre fechada, quedou-se aberta e pude ver, fora da moldura, o personagem em companhia da família.
O corredor espelhado conduzia até o gigante. Era um gigante. Ou as mulheres com quem conversava eram diminutas, e, em minha lembrança, o contraste o transformou num gigante.
Estranhei a moldura vazia.
Sem a presença da figura central, a janela não existia.
Passados alguns anos, deixei o sertão e, na memória, trouxera o quadro comigo.
“Na parede da memória essa lembrança é o quadro que dói mais”. Belchior já sabia.
Meu quadro, no entanto, não era só imagem.
Na cidade, todos achavam graça da sentença que Cabo Rufino repetia. Alguns diziam inclusive ser aquela frase a única coisa que pronunciava.
No meio de uma noite acordei assustado. Numa iluminação, vi naquela frase uma imensa poesia.
Só voltei a dormir depois de assentar-lhe uma pequena melodia.
No dia seguinte, trabalhei por muitas horas sobre o tema. Compus uma primeira parte, porém não passei daí. Após várias tentativas, desisti, exausto, de encontrar um caminho para a conclusão.
Por alguns anos, a música interrompida permaneceu inacabada.
Perdidamente enamorado, um dia experimentei uma desilusão torturante. O tombo violento me fez entender a frase do louco de olhar doce que descortinava o nada. Aquilo era um ferimento.
“O cabo da vassoura cai, a casa não se varre mais. Eu só queria saber por que você me abandonou”
Rufino, não foi fácil sentir sua ferida e finalmente entender seu sofrimento. Como doeu compor a segunda parte.
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Música do dia
- Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Franscico, Interior da Bahia, cronista de ABCD REAL, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro. Entre seus maiores sucessos como compositor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra vez na estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá) , “Espanhola” (com Flávio Venturini), Dona e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas.