Guttemberg Guarabyra
Não dava para as mentes saxônicas imaginarem o indivíduo de cara meio indígena, meio mexicana, ser denominado com um nome alemão puro sangue.
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Meu amigo Alex, alemão de dois metros e quatorze de altura, um gigante, gostava de, com sua voz grave de barítono que ficava ainda mais discursiva ao emiti-la com aquele sotaque pesado e mui germânico, apresentar-me a amigos chegados da Alemanha.
Depois de discorrer sobre quem eu era, e jamais me foi traduzida essa descrição do meu ser, completava a apresentação à plateia de estrangeiros com um invariável pedido:
— Diga como você se chama.
Assim que eu respondia ‘Guttemberg’, a reação prevista — por se tratar de um ato teatral que mais uma vez encenávamos em parceria —, a plateia cumpria uns dez segundos de atônito silêncio e a seguir disparava uma coletiva gargalhada.
Não dava para as mentes saxônicas imaginarem o indivíduo de cara meio indígena, meio mexicana, ser denominado com um nome tão alemão.
Outro dia, num sonho, lá estava Alex.
Por um bom tempo circulei pelas ruas e avenidas da capital paulista montado numa Mobylette. Espécie de pangaré do mundo das verdadeiras motos.
Mas não era pelo motivo de estar cavalgando uma montaria de ferro magro e de pequeno porte que me descuidava da segurança, sempre rigorosamente observada, e dos trajes nobres de quem montava um cavalo de cruzada, sem falar do capacete de fazer inveja a qualquer fã do Mundial de Motos.
Certo dia, deslizava pelo grande declive da Avenida Rebouças.
De repente, o chamado:
— Gut! Gut!
Os íntimos me chamam de Gut, abreviatura de Guttemberg, o nome que faz rir alemães.
Custei a crer de onde provinha o chamado.
A voz partia do interior de um carro-forte, que trafegava à minha esquerda, emitida através das portinholas usadas para uso de armas de defesa dos seguranças que viajam trancafiados no cofre ambulante, e por onde com certeza o autor do chamado me observava.
O mistério é como sabia que era eu, já que me encontrava com o rosto escondido pelo capacete.
Mas pelo menos uma dica que poderia ajudar a esclarecer o enigma, pude escutar em meio ao tumulto do trânsito e ao barulho do vento nos ouvidos.
— Eu sou de Bom Jesus da Lapa!
Antes que pudéssemos levar mais longe o papo de reencontro entre amigos de infância, tive que dobrar numa rua transversal em direção ao meu destino, enquanto o blindado seguia em frente transportando meu amigo em direção ao dele.
No sonho, havia esta cena.
Só que, em vez do amigo de infância, Alex é quem gritava pela escotilha:
— Diga como se chama!
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Música do dia
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- Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Franscico, Interior da Bahia, cronista de ABCD REAL, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro. Entre seus maiores sucessos como compositor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra vez na estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá) , “Espanhola” (com Flávio Venturini), Dona e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas.