Bala, bola e a morte de Getúlio

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Guttemberg Guarabyra

O Brasil lamentou por muitos anos a morte do, para uns eterno caudilho, para outros santo protetor dos pobres.

Freei bruscamente meu velocípede vermelho de aros cromados ao ver um de meus manos mais velhos, de uniforme escolar, numa desabalada carreira pela J. J. Seabra, onde morávamos, em Xique-Xique, em direção à nossa casa.

Não fazia sentido.

A rotina diária era a de, sempre que ele se dirigia à escola, que ficava no final da avenida larga e arborizada, eu montava no meu reluzente meio de locomoção, um privilégio para quem tinha apenas 6 anos, e depois de muito rodar calçada a calçada da vizinhança, aguardar ainda muitas voltas dos ponteiros do grande relógio da sala até que o mano regressasse das aulas.

Naquele dia, presenciava, estupefato, a rotina sendo alterada pela corrida do mano, saltando montes de areia, driblando rodamoinhos de poeira pra lá de comuns na época da seca, até galgar em apenas dois saltos os degraus da entrada da casa e de lá de dentro gritar para que Cecy, nossa mãe, escutasse:

— Não vai ter aula!

Menino não é muito de meditar sobre quebras de rotina. E, mesmo intrigado, toquei força no pedal e retomei o passeio.

Porém, tive que brecar de novo o possante. O mano, feito um raio, saltou de volta os degraus da entrada já totalmente enfiado no outro uniforme que utilizava além daquele da escola. O uniforme de jogar bola.

Metido no calção e camiseta, estacou na calçada alta, ergueu acima da cabeça, como um troféu, a bola que trazia entre as mãos, e finalmente esclareceu tudo.

— Não vai ter aula. Getúlio morreu!

O ditador, aliás, naquele ano, ex-ditador, pois cumpria finalmente um mandato por voto direto, lá no distante Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, capital de República, havia enfiado uma bala no próprio peito.

O mano arremessou a pelota para o ar, aplicou-lhe um chutão, e foi jogar.

As consequências do ato ribombaram mundo afora. Certamente devem ter ecoado até mesmo na Europa antes de chegar a Xique-Xique, onde a eletricidade só era distribuída às casas num curto período da noite, e os rádios, única fonte de notícias, eram movidos a bateria de carro.

O Brasil lamentou por muitos anos a morte do, para uns eterno caudilho, para outros santo protetor dos pobres.

Depois o fato caiu no esquecimento.

Para mim, no entanto, não há como esquecer. Bala lá, bola aqui, a tragédia daquele 24 de agosto de 1954, pelo menos em Xique-Xique, fez um brasileiro feliz.

 

Música do dia

  • Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Franscico, Interior da Bahia, cronista de ABCD REAL, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro. Entre seus maiores sucessos como compositor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra vez na estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá) , “Espanhola” (com Flávio Venturini), Dona e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas.

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