- Guttemberg Guarabyra
O melhor do mundo do dinheiro digital é o extermínio da falta de troco.
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Eu e duas amigas tomamos um táxi em Copacabana e pedimos para nos levar ao Café Teatro Casa Grande, no Leblon. Caetano Veloso havia acabado de surgir, e bota surgir nisso, no cenário musical brasileiro, sem lenço e sem documentos, explodindo contra o vento e contra toda a acomodada cultura conservadora.
E queríamos ver aquilo de perto.
Quando iniciei a carreira, tive como maior incentivador o musicólogo Nelson Lins e Barros. Através dele fiquei conhecendo não só a rapaziada que também estava iniciando, como Caetano, Gil, Edu Lobo, Sidney Miller, Chico Buarque, o próprio Sá, de quem sou parceiro de partitura e de palco, e nesse 2022 fazemos 50 anos juntos, como também escritores, dramaturgos, poetas ilustres e grandes e consagrados jornalistas, músicos e compositores, já que Nelson era o grude que unia a intelectualidade carioca.
Dessa forma, fui apresentado a Ferreira Gullar, Sérgio Cabral pai, Mário Lago, Sérgio Noronha, Edu da Gaita, Oldemário Touginhó, Dias Gomes.
Mesmo tendo passado muitos anos de quando convivi de maneira mais frequente com a turma, sempre que nos topamos pela vida há abraços e inevitáveis reminiscências.
Numa manhã, Dias Gomes, de quem não tinha notícia havia uns vinte anos, ligou-me.
‘Olá, Guarabyra, quanto tempo, etc. etc.’ E foi logo ao assunto. Ele estava saindo de uma reunião na Globo, presente toda a cúpula, em que ficara decidido que a novela Roque Santeiro, que, com o nome de Berço do Herói, havia sido proibida pela censura da ditadura militar anos atrás, iria ser novamente gravada e exibida, com novo elenco, direção. E, naturalmente, nova trilha musical.
Na reunião, continuou Dias, fiz apenas uma exigência. A de que você compusesse o tema do personagem principal, cujo nome será também o da novela. Roque Santeiro.
Falou também que gostaria que a letra narrasse o perfil do personagem à maneira do ABC dos cantadores nordestinos, que contam a história iniciando cada frase na sequência do abecedário, tipo diz o A, e conta uma parte, diz o B e segue a narrativa, diz o C, o D, e assim por diante.
Mas que essa ideia, Boni, o diretor geral, não tinha aprovado.
Convoquei o parceiro para compor comigo o tema, e naturalmente topamos a briga pelo ABC ao lado do Dias, e ganhamos a parada.
E enfim o táxi estacionou à porta do Teatro.
Não havia naquela época nada de internet, maquininha de pagamento e, para acertar a conta no táxi, não eram aceitos cheques. De modo que tive dificuldade em achar na carteira exatamente a quantia quebrada marcada no taxímetro.
Faltavam 25 centavos. Perguntei ao motorista se poderia dispensar a quantia, que na moeda corrente da época era, assim como hoje, irrisória, mas o gajo não aceitou a proposta.
Uma das amigas finalmente achou uma moeda de 50 centavos. Só assim o motorista aceitou o pagamento e gentilmente abriu-nos a porta, ao que me recusei a saltar se ele não me desse o troco de 25 centavos a que tinha direito.
Aí foi a vez de ele se apertar. Procura daqui e dali, cinzeiro, porta-luvas, carteira, todos os bolsos, e nada de encontrar o troco.
Resultado, devolveu-nos os 50 centavos e finalmente pudemos assistir Caetano.
Na saída, o companheiro de táxi, na volta para casa, foi um velho amigo. Este, um dos mais conservadores da minha laia, mal se acomodou no banco ao meu lado, arregalou os olhos e pálido de espanto comentou; — Você viu?
Respondi certamente com uma cara de espanto ainda maior. — Vi o quê? — Ele está usando guitarra elétrica!, respondeu quase tendo um infarto.
Pois é, naquele tempo parte da intelectualidade exigia que a música brasileira não fizesse uso de instrumentos que a música internacional, notadamente a norte-americana, e principalmente o Rock, utilizava. E a guitarra elétrica passou a ser símbolo de entreguismo cultural.
Caetano, naquela noite, tinha dado, mais uma vez, o troco. E na medida certa.
Fui pra casa rindo por dentro, mas absolutamente satisfeito com todas as despesas da noite, ingresso, chope gelado, e não tive nenhum aborrecimento com troco. No bar, aceitavam cheques.
Músicas do dia
- Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Franscico, Interior da Bahia, cronista de ABCD REAL, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro. Entre seus maiores sucessos como compositor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra vez na estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá) , “Espanhola” (com Flávio Venturini), Dona e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas.