“Nous allons”, Milton

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  • Guttemberg Guarabryra

Uma noite surgiu lá Milton Nascimento, que apesar de já ter uma carreira com vários quarteirões à frente da minha, ainda era igual perambulante em busca de uma turma boa.

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Vejo Milton, meu padrinho de casamento, me cumprimentando no altar da igreja, e imediatamente estou no Rio de Janeiro dos anos 60s.

Magricela, assustado num trem da Central, levava numa pasta escolar papelada de cobranças que eu, como ‘office-boy externo’ da Líder Contabilidade, usava para fazer cobranças Rio de Janeiro afora, das mensalidades e outras taxas de clientes do escritório.

Alguns pagavam em dinheiro. Daí o disfarce da bolsa escolar.

Ainda que o Rio daquela época não fosse a tumultuada capital dos tiroteios de hoje, dar bobeira em trem da Central transportando dinheiro alheio, já valia o adjetivo com que me brindei no segundo parágrafo.

Entrava no vagão e, se encontrasse algum assento, abundava-me e, ato contínuo, ajeitava a velha pasta de couro no chão e concluía o disfarce colocando o pé, cujo sapato quase sempre continha um furo na sola protegido por um pedaço de jornal dobrado, em cima.

Ninguém poderia pensar que um menino (tinha 17 com cara de 15) estivesse carregando para a escola, em vez de livros, documentos e dinheiro vivo.

Irajá, Bonsucesso, Matadouro, Vila Isabel.

Nem todos os bairros eram servidos por linhas de trem. Os bondes também ainda faziam parte da paisagem da Cidade Maravilhosa, além de Gordinis, Fuscas e velhos e queridos taxis enormes e pretos, que mais tarde, quando comecei a ganhar um dinheirinho, tornaram-se meus prediletos.

Se ia tomar um taxi, avisava aos amigos. Melhor pegar um tradicional.

Um dia, resolvi trocar a pasta por um violão com capa de pano.

Ia para Copacabana a ver se algum incauto me escutava, se gostava das músicas que fazia e, quem sabe, se abria alguma porta que desse num caminho que desse em algum emprego que desse n’algum trocado pro ônibus.

Saía de casa, no Cachambi, gritava pra minha mãe, Cecy, lá dentro de casa, a mesma frase diária com que anunciava mais uma incursão às terras da zona sul maravilha: “Bye bye, Cecy. Nous allons!”

A frase acabou entrando na letra de um sucesso que comporia mais tarde com Renato Correa e Danilo Caymmi. Casaco Marrom.

“Eu vou voltar aos velhos tempos de mim / Vestir de novo meu casaco marrom / Tomar a mão da alegria e sair / Bye Bye, Cecy. Nous allons”

“Copacabana está dizendo que sim…” E foi em Copacabana, mais precisamente no Leme, que finalmente encontrei minha primeira turma.

No Bar do Careca, mais conhecido como Bar do Manifesto, já que era frequentado pelo grupo vocal do mesmo nome, fui pela primeira vez reconhecido como compositor.

Uma noite surgiu lá Milton Nascimento, que apesar de já ter uma carreira com vários quarteirões à frente da minha, ainda era igual perambulante em busca de uma turma boa.

Fizemos de cara uma tremenda amizade. Fomos padrinhos de casamento um do outro. ganhamos o mesmo grande festival que nos projetou.

E hoje, quando se despede dos palcos, e nos deixa um  ‘nous allons’ repleto de dever cumprido, a crônica é só pra dizer obrigado.

Fez muito.

Do padrinho, com toda a admiração do mundo.

 

Música do dia.

  • Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Franscico, Interior da Bahia, cronista de ABCD REAL, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro. Entre seus maiores sucessos como compositor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra vez na estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá) , “Espanhola” (com Flávio Venturini), Dona e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas.

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