- Guttemberg Guarabyra
Minha vó Alice dizia que tudo demais é sobra. Tem lógica. Se é demais é porque excedeu. Portanto, sobra.
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Depois do programa, Erasmo Carlos me chamou num canto para perguntar se eu tinha mesmo feito a música ali, naquela hora, ou se já estava pronta quando a apresentei. Confirmei que havia sido composta naquele momento.
Acercou-se de nós o outro participante do programa. Este, não lembro bem de quem se tratava. Forço a lembrança e vejo Luiz Vieira, mas confesso que não tenho certeza.
Ao ouvirem minha resposta, olharam-se por um instante. E caíram na gargalhada.
Quem já não cometeu algum deslize, fez alguma idiotice, deu algum fora e teve que aturar alguma chacota?
Às vezes você percebe que vai entrar numa fria e dá um jeito de sair de fininho. Mas nem sempre consegue escapar.
Escrevo isso e vejo na televisão o anúncio da passagem de Danuza Leão. Ela comandou um programa de entrevistas lá pela década de 60, ou 70.
A gente vai envelhecendo e a memória vai ficando assim, não sabe se é Luiz Vieira nem a data de um programa em que foi entrevistado.
A pergunta de Erasmo, que não era entrevistador, foi feita nos bastidores. Já a de Danuza foi em pleno ar e transmitida ao público. Não lembro exatamente o fato que narrei e provocou a pergunta. Aí vocês vão dizer que já é esquecimento demais.
Minha vó Alice dizia que tudo demais é sobra. Tem lógica. Se é demais é porque excedeu. Portanto, sobra.
Mas minha resposta, ao contrário, foi bem limitada. Ao narrar, na entrevista com Danuza, que um tal fato havia se passado num lugar elegante, muito chique, sobreveio a pergunta.
Danuza Leão, a ex-modelo que era o próprio sinônimo de coisa elegante e chique, que deslumbrou Paris, flutuou feito uma deusa nos mais elegantes salões do high Society do planeta, queria que eu definisse o sentido de ‘elegante e muito chique’.
Não arrisquei, enrolei, saí de fininho, não defini. Em suma, evitei a chacota.
Que os anjos a recebam com a cerimônia mais elegante que os céus possam produzir ao acolher uma hóspede que já era estrela mesmo antes da viagem.
Já no tal programa com Erasmo, não consegui evitar o vexame. O programa convidava três compositores. A eles era oferecido um tema para que produzissem, na hora, uma nova música.
Recebida a missão, cada um era recolhido a uma sala nos bastidores, e lá, solitário, que tratasse de construir cada nota da melodia cada acorde da harmonia e cada verso da poesia.
Confesso que tentei, mas o tempo concedido era curto. Consegui construir uma bela primeira parte, uma boa porção da segunda, mas o desfecho restou apenas delineado. E tive que apresentar a música incompleta.
Os jurados me desclassificaram.
Nos bastidores, deu-se a conversa com os ‘adversários’.
Eu, coisa de 19 anos, em início de carreira. Os outros dois, artistas experimentados.
Depois da gargalhada, pediram desculpas, me consolaram e confessaram.
Assim que receberam o convite para o programa, trataram de reservar uma das músicas do repertório que, apesar de inédita, já estivesse com melodia e harmonia prontas.
Daí, na solidão da sala, tiveram apenas que escrever a letra, o que era tarefa infinitamente mais simples do que compor harmonia, melodia, letra, enfim, a música completa.
Quem já não cometeu algum deslize, fez alguma idiotice, deu algum fora e teve que aturar alguma chacota?
Melhor esquecer e ouvir a Música do dia.
- Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Franscico, Interior da Bahia, cronista de ABCD REAL, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro. Entre seus maiores sucessos como compositor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra vez na estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá) , “Espanhola” (com Flávio Venturini), Dona e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas.