Sabor da Solidariedade

In Artigo On
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  • Guttemberg Guarabyra

Reconheci no olhar do senhor que saltava da pequena lancha de passageiros, no porto de Bom Jesus da Lapa, banhado pelo São Francisco, um sinal de alarme, de desespero, uma aflição. O braço enfermo pendurado numa faixa de pano amarrada ao pescoço, parecia coisa séria, já que o apoiava com a outra mão, a indicar que até pequenos movimentos provocavam dor.

Aproximei-me. “O senhor precisa de alguma coisa?”. “Você sabe onde é o hospital?”. Sabia, conhecia inclusive alguns médicos que o serviam. Pra resumir, o senhor de chapéu de palha e braço pendurado na tipoia era um pescador que, numa caçada, havia ferido a ele próprio com uma espingarda de chumbo. No lugarejo em que vivia, o serviço médico não tinha capacidade para cuidar da infecção que se agravava, e lhe sugeriram que viajasse até Bom Jesus da Lapa, onde o hospital oferecia mais recursos.

Examinei de perto o estrago feito pelo tiro. O inchaço e a roxidão eram assustadores. Estacionado ali perto, um carro de boi que havia cumprido o transporte de alguma carga, manobrava para voltar à cidade. Por sorte o carreiro conhecia meu pai, e pude contratá-lo fiado de modo que que o ferido pudesse ser transportado acomodado num assento o mais confortável possível, que improvisamos com sacos vazios e outros apetrechos que estavam por ali.

No hospital, pedi ao carreiro que nos aguardasse enquanto providenciava algum socorro. Achei o Dr. André, e pedi que desse uma olhada no ferimento. A reação foi a pior possível. Alarmado, diagnosticou um princípio de gangrena e, ainda pior, que nem mesmo o hospital tinha condição de tratá-lo adequadamente, tal o estado lastimável em que se encontrava. Chamou uma enfermeira, refez todo o curativo, protegeu a inflamação da melhor forma.

Em minha cabeça eu já havia elaborado um plano. Levaria o pescador para minha casa e o hospedaria. Meu pai estava ausente, cuidando de alguma causa em alguma cidade.

Havia lá um quarto vago e minha irmã Bené me ajudou a prepará-lo para o hóspede enfermo. E assim que o vi acomodado, parti depressa para conversar com meus amigos da base da Aeronáutica, no aeroporto.

Falaram com o comando em Salvador, para ver se conseguiam alguma aeronave que pudesse transportar o homem doente até a capital. Foi com muita comemoração que recebemos a informação positiva.

Tempos depois, chegando em casa após uma rodada de bicicleta mato adentro, para colher alguns umbus, entrei em casa e Bené me deu a notícia. O homem que havíamos socorrido havia passado lá e me trazido peixes salgados de presente.

Relatou que os médicos da capital lhe disseram que se demorasse mais dois dias sem atendimento, teriam que amputar-lhe o braço.

Saltei novamente na bicicleta e fui correndo avisar no aeroporto que a ajuda de todos havia sido recompensada.

De volta para casa, degustei a mais saborosa peixada de surubim seco de toda a minha vida.

Até mesmo os umbus, que nem sequer estavam amadurecidos completamente, me pareceram os mais deliciosos que já havia provado.

Música do dia.

 

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