- Guttemberg Guarabyra
Em Bom Jesus da Lapa, bastava atravessar a rua e já estava na marcenaria de Nemesio. Chegava do colégio, almoçava e ia pra lá, onde o astral era ótimo. Lixa daqui, enverniza dali, prega acolá, e, no ar, a animação dos causos sobre a vida da cidade. Messias, meu grande amigo Messias, trabalhava numa peça que me intrigava. Uma pequena canoa, cerca de um metro, em que caprichava com ferramentas e arte. Intrigava-me saber quem a teria encomendado. Perguntei, disse-me que era segredo. Fui surpreendido, ao final do trabalho, ao saber que era um presente para mim. Na primeira viagem que fiz com meu pai para Santa Maria da Vitória, nas pequenas lanchas que faziam o transporte de passageiros entre as duas cidades, escolhi uma cordinha forte, a amarrei na quilha, na argola que Messias cuidadosamente havia implantado e, assim, que, deixando pra trás o Rio São Francisco, iniciamos a navegação pelo Rio Corrente, de águas límpidas, fui para a traseira da embarcação e pus meu barco n’água. Impossível descrever a satisfação de vê-lo navegando feito gente grande, com a proa dividindo as águas e espremendo-as em dois jatos laterais. O piloto reclamou com meu pai que o arrasto do meu barco provocava resistência que podia influenciar na velocidade da lancha. Ouvi a reclamação e dirigi a ele um olhar talvez de tanta súplica, que balançou os ombros num deixa pra lá, e pude continuar navegando minha canoa como quem flutua um sonho. Até que, até hoje não explico, a corda escapuliu-me das mãos e lá se foram meu barco e meus sonhos. Não sofri sozinho. Só nesse momento percebi que todos os passageiros também vislumbravam o barquinho, e a tristeza se estampou em todos os rostos, solidária.
Anos mais tarde, navegando pelo imenso São Francisco, num vapor, embarcação bem maior do que a lancha e ainda mais imenso do que meu barquinho, numa tarde ensolarada minha mãe pendurou na pequena amurada, como era costume fazer-se nas viagens, algumas peças de roupa que havia acabado de passar água, para que enxugassem. No vapor existia um excelente serviço de camarote, com troca diária de roupa de cama, uma cozinha que mandava uma comida deliciosa, mas não havia lavanderia, de modo que esse quesito ficava a cargo dos passageiros que precisassem lavar alguma peça. Tudo transcorria muito bem, e, sentados no banco do corredor, vigiávamos as roupas até que um vento súbito elevou minha preciosa camisa azul acima da amurada e lá se foi ela voando até aterrissar no rio, sendo levada pela correnteza, ora sumindo, ora refletindo o azul no sol, até desaparecer.
Devo muito aos rios. Mas eles me devem um barco precioso, uma camisa querida, e só não me devem sonhos, pois que esses as correntezas não levam.
Música do dia.
- Guttemberg Nery Guarabyra Filho, ou Guttemberg Guarabyra, ou apenas Guarabyra, nascido em Barra, Vale do São Franscico, Interior da Bahia, cronista de ABCD REAL, músico, compositor, escritor e poeta brasileiro. Entre seus maiores sucessos como compositor estão as canções “Mestre Jonas” e “Outra vez na estrada” (ambas em parceria com Luiz Carlos Sá e Zé Rodrix), “Casaco Marrom” (com Renato Correa e Danilo Caymmi), “Sobradinho” (com Luiz Carlos Sá) , “Espanhola” (com Flávio Venturini), Dona e muito mais. Escreveu O Outro Lado do Mundo e Teatro dos Esquecidos, além de inúmeras crônicas.